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quinta-feira, 11 de março de 2010

LXIV - LEVANDO A SÉRIO A UNIDADE E A PLURALIDADE

Parte LXIV
LEVANDO A SÉRIO A UNIDADE E A PLURALIDADE

 O mundo em que vivemos não é tão singular como parece ser. Pelo contrário, vivemos marcados pela pluralidade a cada passo, e nas coisas mais triviais. No café da manhã: "Como pão, bolacha ou cuscuz?" Escolhemos, temos pluralidade. "Não sei se tomo café com leite, café puro ou um suco de frutas?"



Falamos em claro e em escuro, passando por todas as gradações, do preto retinto ao branco mais alvo ao ponto de cegar como o branco do gelo polar. Falamos em dia e em noite, da mais profunda escuridão da meia-noite e do mais claro brilho do meio-dia. Falamos em quente e em frio, do escaldante calor do sertão até os 23° da temperatura de conforto caminhando para o mais gélido e paralisante frio da Antártida. Não sai de minha mente uma experiência dolorosa pela qual passei porque queria economizar uns sofridos centavos. Bolsista nos Estados Unidos, fui abastecer o carro. Os postos têm o auto-serviço (mais barato) e o atendimento por frentista. Costumava usar o primeiro por ser mais em conta. Naquele dia, não dei conta de um importante detalhe: era inverno, neve no chão e o fator térmico (wind chill) estava mais ou menos a 22° abaixo de zero. E fiquei enchendo um tanque de gasolina que armanezava cerca de 120 litros de combustível. Daí a pouco, as orelhas começaram a doer, a arder e pareciam querer quebrar. Ficou tão congelada que se alguém desse um piparote, ela cairia. Na mesma cidade, experimentava-se um sufocante calor que dobrava velas de decoração no verão e esse tremendo frio. Assim é o mundo: plural. O ódio está junto do amor. Alguém pode amar imensamente, e de repente toda essa paixão se torna um ódio assassino. Esse é o mundo em que vivemos.

Quem trabalha com informática, administração, e, mesmo, terapia de família e de casal conhece a obra intitulada Teoria Geral dos Sistemas de Ludwig Von Bertalanffy. É trabalho clássico e básico nos estudos de terapia familiar. Ensinou esse autor que o Cosmos é um enorme sistema que envolve subsistemas. Referimo-nos ao Cosmos, ao Universo, que está formado por galáxias. Estas, por sua vez, estão formadas por constelações, grupos de estrelas; cada estrela tem planetas ao seu redor, e muitos planetas têm satélites à sua volta, como o nosso sistema solar: o Sol no centro, ao redor dele, os nove planetas, e no caso da Terra, um satélite que é a Lua.

A Terra, por sua vez, envolve outros subsistemas. Temos continentes, que têm países, que têm estados ou províncias, que têm municípios ou condados, que têm cidades e vilas, que têm bairros, que têm ruas. As ruas têm vizinhanças, conjuntos residenciais, loteamentos que têm casas, que têm famílias, que têm pessoas. Cada pessoa tem sistemas dentro de si (digestivo, respiratório, reprodutivo, etc.), que possuem vez têm órgãos, que têm células, que têm... e aí, vamos desdobrando sistemas e subsistemas ad infinitum.

Se quiserem pensar ao reverso, somos sistemas envolvidos por outros sistemas maiores, envolvidos por outros ainda maiores e vamos prosseguindo. Na verdade, cada um de nós é formado por células que formam sistemas com outras células e, deste modo, órgãos do corpo são formados. E formam-se os indivíduos, que formam subsistemas familiares, vicinais ou comunitários (escolas, igrejas, etc.).

Não; nosso mundo não é simples, é, como estamos vendo, altamente pluralístico.


QUANTO À FÉ


Deus não é plural. Pelo contrário, está na confissão de fé de Deuteronômio 6.4: "Ouve, Israel, o Senhor, nosso Deus, o Senhor é Um!" Ou como dizem algumas versões: " Ouve, Israel, o Senhor, nosso Deus, é o único Senhor!" E, apesar de a doutrina cristã registrar em seus documentos de fé a doutrina da Trindade, não dá ocasião para se pensar em pluralidade. Não estamos falando de pluralidade de deuses, mas de cooperação.

E essa é a extraordinária lição da doutrina da Trindade: quando uma Pessoa trabalha, todas as outras trabalham. Deus-Pai não trabalha só; Deus-Filho não trabalha isolado, e Deus-Espírito Santo não está sozinho fazendo a Sua obra. Pelo contrário, na obra criadora, atesta Gênesis no capítulo 1, e não podia ser mais claro: "No princípio, criou Deus os céus e a terra". Está falando de Deus Pai, o Criador.

"A terra era sem forma... e o Espírito ..." Observaram? Aqui já temos o Deus-Pai e o Deus-Espirito Santo. E então vem uma declaração suprema: "E disse Deus...". Deus usou a palavra. Mas não está em João que "A Palavra (O Verbo) se fez carne"? Temos toda a Trindade trabalhando na criação.

No final das Cartas paulinas temos a chamada Bênção Apostólica. Em 2Coríntios está a mais completa fórmula dessa tocante Bênção: "A graça do Senhor Jesus Cristo [o amor que não merecemos, mas vem do coração do Salvador], o amor de Deus [Sua extraordinária benignidade, Sua misericórdia], e a comunhão do Espírito Santo sejam convosco".

Temos mais uma vez, a unidade da Trindade porque quando o Pai age, o Filho age e o Espírito Santo age; quando o Filho age, o Pai age e o Espírito age; quando o Espírito Santo trabalha, o fazem também o Pai e o Filho.

E nessa linha de cooperação irrestrita, Jesus Cristo orou como registrado em João 17 pelos Seus discípulos. Jesus ora pela unidade dos crentes. Não pela pluralidade, não cada um pensando em si, não cada um querendo o interesse de sua própria família, ou de seu grupo, ou de seus amigos.
Mas, como crentes em Jesus Cristo, precisamos ser coesos, olhar para o Senhor, o nosso Senhor, Senhor do nosso coração, de nosso passado, que Ele limpou; de nosso presente, porque Ele age e caminha conosco nas atuais circunstâncias; e Senhor do nosso futuro, porque breve o dia vem quando Ele retornará. Maranata! Vem Senhor Jesus!

Na Oração Sacerdotal (João 17), Jesus Cristo diz, "Eu lhes dei a glória que tu me deste, para que sejam um, como nós somos um: Eu neles, e Tu em mim, para que sejam perfeitos em unidade, e para que o mundo conheça que Tu me enviaste" (vv. 22, 23). É a maneira que o mundo tem para saber que o Mestre veio para a salvação do que crê, para dar qualidade de vida, que Ele chamou de "vida abundante", veio para nos remir, para redimir. Precisamos olhar, portanto, com o mesmo estilo de cooperação da Trindade.


O SER HUMANO


A Bíblia Sagrada ensina que o ser humano é uno. É um engano imaginar que o ser humano tem um corpo, tem um espírito e tem uma mente. Na verdade, o ser humano é uma alma vivente. 'Adam é o ser humano completo, total, é o ser humano com nephesh, o ser humano com ruach, o ser humano com hay, o ser humano vivo, espiritual, alma vivente. Apesar de falarmos helenicamente fazendo essa separação: corpo, alma e espírito.

Existem até escolas teológico-filosóficas discutindo esse assunto que não é propriamente doutrinário. Uma pessoa pode ser o que se chama de dicotomista e seu companheiro, tricotomista.
Dicotomistas são os que entendem ser o ser humano formado por corpo + alma/ espírito, alma e espírito sendo a mesma coisa Os tricotomistas, no entanto, compreendem ser a pessoa humana formada de corpo + espírito + alma, que nesse caso é a sua mente, são as funções volitivas e cognitivas. Aí, teríamos o ser humano formado de três partes. Mas não podemos separá-las. Temos na ordenança do batismo um facilmente compreensível retrato do que será a ressurreição. Os candidatos entram na água, e destacam a figura do sepultamento; saem, em seguida, da água apresentando a metáfora da ressurreição, precisamente nos termos de Romanos 6.3-5. A Bíblia ensina que no dia da ressurreição, nossos corpos que estarão nas sepulturas, tragados pelos mares, devorados pelas feras, como os dos mártires cristãos do primeiro e segundo séculos, agora transformados em corpos gloriosos serão reunidos aos seus espíritos mais uma vez, e o ser humano salvo, uno, ressuscitado, será arrebatado com o Senhor Jesus para todo o sempre.

Quando pastoreávamos uma igreja hispana na outra América, cantávamos um apreciado e comovente hino que dizia que no dia do retorno de Jesus Cristo "de la tumba fría me llevantaré com un cuerpo ya inmortal". Sim; da fria sepultura vamos nos levantar com um corpo agora com o dom da imortalidade, pois somos unos, ensina a Escritura.

E, com essa afirmação, todo o conceito de que cada ser humano é uma pessoa una, única e indivisível, razão porque não aceitamos a pretensa doutrina de uma reencarnação. Você não é você, segundo a reencarnação. Como alguém me falou, "Descobri que era um monge na Idade Média, morava num mosteiro". Outro disse, "Eu era nobre na corte do Rei Não-sei-quem das Quantas..." Porém, ninguém quer ser ladrão de cavalos na "vida passada". A Bíblia não autoriza ensinar qualquer traço dessas aberrações, mas diz que nós somos unos e assim o seremos por toda a eternidade.

Só para efeitos didáticos podemos dicotomizar a pessoa humana e dizer: corpo e alma; corpo e mente; corpo e espírito; soma e psiquê; soma e pneuma. Ou, ainda, corpo, alma e espírito; corpo, mente e espírito; soma, psiquê e pneuma. Ou assemelhados.

Os próprios elementos químicos e minerais formam uma unidade no ser humano. Fomos criados do barro. A Bíblia ensina que fomos criados da 'adamah {e aqui há um sugestivo e belíssimo jogo de palavras), da 'adamah foi criado 'adam, o ser humano. Do húmus foi criado o homem, num quase perfeito jogo de palavras em português também.

E esse barro tinha sais minerais. Quando alguém tem deficiência de sais minerais tem que tomar um complexo de vitaminas e sais minerais, e cálcio, magnésio, zinco. O ferro que temos no corpo dá para fazer um preguinho quase do tamanho do polegar. O ouro, no entanto, é pouquinho, não dá para fazer coisa nenhuma. Sem dúvida, somos uma unidade.

Fico maravilhado quando leio o que Jesus Cristo fez na vida de um homem na região de Gadara (ou Gerasa). A história é encontrada em Marcos 5.1-20. Jesus chegou à praia e os discípulos desceram com Ele do barco. Era tardinha, aquele lusco-fusco da tarde, não era ainda noite, porém não mais era dia, o Sol já se havia posto, e chegado as primeiras sombras da noite.

Então viram alguém correndo na praia, uma estranha e desgrenhada figura, suja, maltratada e mal-cheirosa. Quando a criatura foi se aproximando, notaram que não estava em si. E a pobre criatura exclamou: "QUE TENHO EU CONTIGO, JESUS, FILHO DO DEUS ALTÍSSIMO???"

Duas declarações: uma maravilhosa, outra, no entanto, terrível. Comecemos com a ruim: "QUE TENHO EU CONTIGO, JESUS...?" Essa declaração não havia sido do homem. Não fora ele quem o dissera.. A outra, a maravilhosa: "FILHO DO DEUS ALTÍSSIMO" é autêntico reconhecimento.

"Como é o teu nome?" perguntou Jesus. "LEGIÃÃÃO..." responderam muitas vozes. "PORQUE SOMOS MUUUITOS... ROGO-TE POR DEUS QUE NÃO ME ATORMENTES..."



E Jesus então faz uma obra extraordinária respondendo não aos demônios, mas ao homem. "Que tenho eu contigo, Jesus...?" fora a pergunta. TUDO! JESUS TEM TUDO A VER COM O PERTURBADO! Tudo! E expulsou os demônios. E a Bíblia registra que o gadareno não morava com a família, não morava na cidade, mas vivia no meio dos sepulcros, no cemitério. E, por esse motivo, vivia permanentemente impuro. Pois, se quem tocasse um morto ficava impuro, pela Lei de Moisés, impuro (cf. Nm 19.11ss), imagine-se quem vivia no cemitério, considerado como local de habitação de demônios. E Jesus deu libertação ao homem. E que acontece em seguida: foi visto "assentado, vestido e em perfeito juízo" (cf. Mc 5.15). Teve um encontro com ele mesmo: "Como é o teu nome?" "Legião!" Agora tem seu verdadeiro nome, está em perfeito juízo. "Quero ir contigo, Jesus". "Não; você vai voltar para casa e contar o que Deus fez na sua vida". Vivia no cemitério, agora vai ter vida social; dizia, "não tenho contigo", Jesus diz "conta o que Deus fez na tua vida": um encontro com Deus, um encontro com ele mesmo, um encontro com seu próximo. Sua vida ficou toda ajustada. Ele que era "muitos", passou a ter vida una em Cristo Jesus. Isso é shalom, integridade.

Quando o ser humano se convence de sua unicidade, de sua qualidade e felicidade de ser único neste mundo, sua tolerância cresce em todos os sentidos, porque descobre que seu próximo, seu irmão de igreja, seu vizinho, seu parente, o outro é igualmente pessoa única neste mundo e passa a ser mais tolerante, e mais compreensivo, e a sociedade passa a ser mais justa e perfeita porque cada um aceita que aquilo no que é forte completa a necessidade de alguém mais fraco.
Naquilo que é fraco passa a ser socorrido no que expoente nos outros. Leva a sério as diferenças individuais que contribuem para a beleza do todo, sobretudo a unidade da família, da igreja, da sociedade enfim. É como diz a Escritura, "Nós que somos fortes devemos suportar as debilidades dos fracos e não agradar-nos a nós mesmos" (Rm 15.1). Porque somos uma rede de relacionamentos. 

João Cabral de Melo Neto, nordestino, diplomata e poeta nos brindou com uma sensível página intitulada "Tecendo a manhã", onde diz:

Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.

Ao surgirem os primeiros raios do Sol, canta um galo, diz o poeta. Outro galo ouve o seu canto, pega-o, e como se fosse um fio, joga-o para outro galo, que o joga para outro, e para outro, até que se forma um grande tecido, e por fim um grande balão que subindo é o Sol da manhã.

É a metáfora dos relacionamentos tão importantes se queremos levar a sério a esperada unidade que marca a comunhão cristã. Que o Deus da graça e da comunhão nos ajude a atingi-la.

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