Páginas

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

XV - APONTAMENTOS SOBRE O LIVRO

Parte XV
APONTAMENTOS SOBRE O LIVRO

Cristo: uma crise na vida de Deus

Cristo: uma crise na vida de Deus

Jack Miles nasceu em Chicago, em 1942. Ex-jesuíta, é doutor em línguas do Oriente e médico pela Universidade de Harvard. Foi professor da Universidade da Califórnia e presidente do Círculo Nacional de Críticos Literários dos Estados Unidos. Dele, a Companhia das Letras publicou Deus - Uma biografia, vencedor do Prêmio Pulitzer.
Para Miles, Deus tinha um propósito muito mais pessoal do que universal ao enviar Jesus. Deus, como Jack Miles descreve, estava com sérios problemas diante de suas criaturas, pois Ele mesmo, o Deus Todo-Poderoso, tinha, ao que parece, perdido o controle sobre estas.
É claro que, mesmo sendo o autor destes apontamentos feitos sobre o livro de Jack Miles, não concordo com ele, mas, vejo a importância do estudo sobre a sua obra pelo fato de, através dela, respondermos uma pergunta muito pertinente que nos acompanha, como leitores da Bíblia Sagrada: "Deus mudou na pessoa de Cristo?"


Prólogo

Crucificação e a consciência do Ocidente 
Jack Miles diz que a crucificação, a cena fundamental da religião e da arte ocidentais, perdeu muito do seu poder de chocar. Atualmente, talvez somente os não ocidentais possam perceber a crucificação na sua forma real, ou seja, dar o devido valor a este ato.

A questão que nos sobrevém, segundo o autor deste livro, é a de que, se Deus teve de sofrer e morrer, então Deus teve de infligir sofrimento e morte sobre si próprio. Mas, porque Deus faria isso? Uma resposta seria um dito francês: "compreender tudo é perdoar tudo. Todo criminoso foi antes uma vítima". Assim, Albert Camus já tinha escrito, se referindo a Deus, que "ele próprio sabia que não era completamente inocente". Se o Cristo crucificado é divino, então os sofredores são como deuses. Como Deus, o Senhor não pode deixar de existir, mas, como Cristo, pode experimentar a morte, isto é, sua própria maldição imposta sobre a humanidade, e assim, compreender tudo, para a tudo perdoar!

O Pai sofre com o Filho, pois o Pai e o Filho são um só com o Espírito. Então, quando Cristo sofre na cruz, para Miles, o crucificado é ao mesmo tempo inocente e divino, ele é ao mesmo tempo divino e culpado por ser ele Deus-homem. Seu lado humano, é o que herda a inocência, e Seu lado divino, ao contrário do pensamento contido na Hamartiologia comum, é o que herda a culpa. Deus, com isto, se desculpa tornando-se humano, pois o mundo é um grande crime, para Jack Miles, e alguém deve ser obrigado a pagar por isso.


1. O Messias, ironicamente


Neste capítulo, a questão apresentada é a de "o que Deus estava pensando na eternidade". A resposta a nós apresentada é que Deus era o todo abrangente pensamento de si próprio. Em certo ponto no tempo, essa mesma autoconsciência divina e muda se expressou. Porque Deus fez isto? Porque a raça humana, a quem Deus concedera domínio sobre o mundo, tinha se distanciado dele. Deus torna-se um deles. Dessa vez, foi igualmente rejeitado, ainda que por meio dessa rejeição tenha realizado algo glorioso. Pois, através da rejeição, Ele compreende o que sentiu a humanidade quando rejeitada por Ele mesmo no princípio, diante do pecado de Adão. João, o Batista, quando no batismo de Jesus, a encarnação de Deus, saúda-o como o Cordeiro de Deus. O Cordeiro de Deus? Jack Miles argumenta que um leão viria mais a calhar! Pois, qual é o significado dessa estranha frase? Ao referir-se a ele como um animal, o que João Batista está querendo dizer? Miles assevera que algo impronunciável, de repente fora meio dito.

Uma resposta seria a de que, no ritual israelita e judeu, o que o sacrifício do cordeiro de fato levava embora era mais maldição do que pecado. Ela representava o reconhecimento da antiga Israel de que o Senhor ainda não revertera a maldição que havia proferido contra todas as criaturas humanas logo depois de as ter criado. O animal era inocente, assim como Deus deveria tomar a forma humana (inocente) diante da culpa divina, e sofrer humanamente a pena da maldição, que é a morte. A questão, para os judeus da época de Cristo, foi que o esperado filho de Davi devesse fazer o papel de animal de sacrifício! Parecia-se mais, para eles, uma blasfêmia. 

Esperava-se mais Deus como sacrificador e não como sacrificado, pois o sacrificado levava a culpa. Porém, era isto que, segundo Miles, Deus estava fazendo, levando sua culpa. A oferta simbolizava o arrependimento do sacrificante, assim, Deus como oferta, simboliza Seu próprio arrependimento. Deus arrependeu-se! Mas do quê? O que ele fez de errado? É aqui onde o demônio passa a ter um papel avaliativo na capacidade de Jesus como Deus.

Quando o Demônio mostra possuir um certo poder físico sobre Jesus, leva-se, com isto, à pergunta que ele quer ver respondida. Especificamente: quanto poder Jesus tem de fato à sua disposição? Quando o Demônio sugere que Jesus transforme a pedra em pão, está se referindo a muito mais do que à mera fome.

Por trás da sugestão, está a memória de um momento anterior no deserto quando o Senhor alimentou toda Israel com comida miraculosa. O que o Demônio está realmente dizendo a Jesus é: "Você é Deus, o deus que, naquela época, realizou o milagre do alimento no deserto? Se isso é verdade, prove-o realizando outro".

O demônio diz: "Dar-te-ei toda esta autoridade (...) porque ela me foi entregue". Foi entregue por quem? Por quem, se não pelo próprio Senhor? uma pergunta interessante, que Miles faz é que, será que o demônio que desafia Jesus não o estará fazendo em nome do Deus que lhe "havia entregado" esse poder? Pois, Deus entregara o mundo ao Demônio quando Adão e Eva pecaram. Jesus não reivindica o poder ao seu oponente, mas, mostra que poderia fazê-lo, pois o poder definitivo está com o Senhor. o que Jesus deixa em suspenso, é a questão de "se" e "quando" irá reivindicar o poder que, no fim das contas, é seu.

A pergunta diante de tudo isto nos é apresentada no livro de Miles, como: "Por que ele se contém tanto?" Esta pergunta, poderia até ser respondida com outra pergunta: "Que confiança Jesus tem em si próprio?" Estará Jesus mantendo-se com grandeza acima da briga? Ou será sua preocupação a preocupação do seqüestrado?  A questão do "Cordeiro de Deus" continua em aberto. Como pode um imperador ser um cordeiro, ou um cordeiro ser um imperador? Mussolini disse: "Vale mais um dia como leão do que mil anos como cordeiro".

Jesus realiza seu primeiro milagre, como diz Jack Miles, relutante. Este primeiro milagre, não foi uma mensagem aos convidados da festa em si, mas aos seus discípulos. A primeira ação pública da carreira de Jesus, foi na verdade um ataque ao Templo. A destruição do primeiro Templo, Deus deixou claro na época, não foi obra da Babilônia, mas sua. Assim, Jesus demonstra que ele é o mesmo Deus que usou a Babilônia.

Porém, na sua ameaça contra o Templo, tentava ele mostrar uma tipologia entre o Templo literal, com o Templo figurativo, que era seu corpo. O cordeiro expiatório é familiar; um cordeiro humano é estranho. O Templo é igualmente familiar; um templo humano é estranho novamente. Então, na verdade, quando disse para destruírem o Templo, estava desafiando-os a matarem-no. 

A capacidade do Deus encarnado de "saber o que era a natureza humana" foi sendo adquirida gradualmente. Jesus, invariavelmente, parece compreender os desejos de seus interlocutores melhor do que eles próprios. Isto, provavelmente, porque ele, agora que era humano, tinha a totalidade do conhecimento do que é ser humano. 

Jesus fala a Nicodemos sobre uma nova criação, mas privadamente. E mostra ao sábio fariseu que, apesar de seus conhecimentos terrenos, ele não podia ainda falar se Jesus vem de Deus ou não, pois esta capacidade é dada aos "regenerados" apenas.

Jack Miles diz que no A.T., Deus é desatento consigo mesmo. Já no N.T. Ele torna-se obcecado por si próprio. Prova disto, mostra-nos o autor, é quando Deus diz a Moisés que Ele é o "Eu Sou" - Miles diz que este é Seu nome nu e cru. É como se Deus desse um nome a si mesmo, naquele instante, ao descobrir a necessidade de um nome. Ele não vive entre outros deuses, por isto não precisa de um nome, mas passa a lidar com seres humanos, e também com a idéia de outros deuses, então, agora necessita de um nome.

No caso da serpente de bronze do deserto, Deus mostra aos israelitas que Ele é a doença e também o remédio. Assim, as serpentes não eram a causa de suas mortes, mas sim Deus. Jesus, se referindo a este fato, diz que Ele será levantado da mesma forma que a serpente de bronze no deserto. Olhando para Jesus, como para a serpente no deserto, estariam olhando para a causa e também para a cura de seu sofrimento. O mundo precisa ser salvo, mas para tal, necessita-se de uma nova criação, pois este mundo está perdido. Porém, conforme Miles, a nova criação requer a morte do criador. Um ponto muito complicado tratado neste livro, foi a questão da assexualidade do Pai e a sexualidade do Filho. Segundo Miles, os "filhos de Deus" (Gn. 6), parecem descobrir o sexo somente quando encontram as filhas dos homens. Deus é celibatário porque é o único de sua espécie. Então, surge a questão que Jack Miles nos mostra, que, o que João quer sugerir quando chama o Deus encarnado de noivo? Surge então uma pergunta muito interessante, se Deus agora está encarnado, vivendo como um homem, não poderia ele consumar um casamento comum a si mesmo? E se isto tivesse ocorrido? Quando os evangelhos foram escritos, o celibato era considerado condição apropriada para qualquer filósofo. Deus, em toda a história, não recrimina o sexo, mas sim a libidinagem. 

Sendo assim, até mesmo em suas conversas figurativas dirigidas ao Israel rebelde, Ele mostra-se como um marido enfurecido pela incontinência sexual de sua esposa, e não pelos desejos em si. Miles escreve que quando Deus fez Eva para Adão, não a fez para gerar filhos, mas para que o homem não estivesse só. Desta forma, a procriação teria começado apenas depois da "queda", quando a imortalidade foi perdida. A reprodução passa a ser, conforme esta visão, uma evidência da maldição. Com isto, o autor chega à conclusão que se não tivesse morrido cedo, Jesus teria se casado.

No desenrolar de suas manifestações no N.T., Jesus admite que é o Messias, mas a uma mulher samaritana, considerada na época, pelos judeus, como herege. Jesus fez isto, segundo Miles, para dar a entender aos judeus que eles eram como aquela mulher, adúltera e, assim como os judeus consideravam os samaritanos, herege. A mulher interpreta a atenção de Jesus a ela, como um flerte, mas Jesus corrige seu pensamento sobre ele. Assim como a mulher teve cinco esposos (senhores), sem nenhum ser seu marido, os samaritanos tiveram vários deuses, sem nenhum deles ser o verdadeiro Deus.

Jesus se apresenta a ela como o "Eu Sou", e ela acredita-lhe, pelo mesmo motivo que levou Natanael a acreditar-lhe, Jesus leu sua mente e seu passado. Jesus mostrou à mulher samaritana que a salvação vem dos judeus, mas não acaba neles. Seus discípulos vêm esta sua atitude como promiscuidade, uma simbologia à promiscuidade de Deus, isto é, simbolicamente, seu interesse por outros povos.

Para findar este capítulo, Miles expõe a questão de "quem seus discípulos pensam ser ele". Foram-lhe conferidos alguns papéis, na seguinte ordem de aparição: 1. Juiz; 2. Cordeiro de Deus; 3. Messias (Filho de Davi e Filho Adotivo de Deus); 4. Filho do Homem; 5. Templo; 6. Noivo; 7. Profeta e Legislador (Um Segundo Moisés).


2. Um profeta contra a promessa


Sua primeira cura, já foi, diante do pensamento judeu, contrária, pois curou uma criança romana (Jo. 4:49-53). Parece que Jesus tenta esconder algo, talvez todo seu poder? Um demônio, num breve encontro com Jesus, parece tentar rasgar seu disfarce (Lc. 4:33-37), dizendo: "Eu sei quem você é". Também nos é sugerido aqui, que como Deus encarnado, Deus parece haver perdido seu apetite por punições. Em Lucas 4:16-22, Jesus disse que a profecia de Isaías 61:1-2 que diz: "hoje se cumpriu", estava em seu pleno cumprimento nEle. Isto fez com que os homens de Nazaré, insultados, tentassem matá-lo. Jesus diz, em Lucas 4:25-27, que Elias deu atenção aos estrangeiros, ao invés de usar todo o seu tempo aos israelitas. E é aqui onde Miles pergunta se será que Jesus está sugerindo, de forma escandalosa, que a profecia que "hoje se cumpriu" será cumprida não em benefício de Israel, mas sim de seus vizinhos e inimigos?

Sugerir que Elias, em seu retorno, empregaria seus poderes em benefício de outras nações, em vez de Israel, é um misto de blasfêmia e traição. Se "liberdade para os cativos" refere-se a alguma outra coisa que não a liberdade de Israel do jugo estrangeiro, o que seria?

A grande pergunta que pairava no ar, enquanto esta mensagem de Jesus estava sendo proferida em Nazaré, era: "Não é este o filho de José?" a resposta é sim, e deve ser sim. Na verdade, não foi a maneira do nascimento de Jesus que daria-lhe autoridade divina, pois Deus poderia facilmente ter introduzido a concepção em uma virgem sem que, no momento em que ela desse à luz, ele próprio fosse o bebê.

É a identidade do bebê, não a maneira do nascimento, que é inédita. Maria fica sabendo, por Gabriel, que seu filho será o Messias, o descendente do rei Davi e que restaurará a grandeza de Israel. Ainda tratando do nascimento de Jesus, Miles nos suspende com a seguinte afirmação: "Deus poderia ter se tornado humano sem começar sua existência humana no útero de uma mulher.

Mas, Deus não quis privar-se do momento tão conhecido e diferenciado, que é o nascimento.

Apesar de todos os bebês serem parecidos, todas as cenas de nascimento são diferentes entre si". Outra coisa bem frisada nesta parte do livro, é que Jesus nasceu em um momento humilhante da vida dos judeus, propositadamente, é claro - pois estavam passando por um censo conduzido por um poder estrangeiro. Algo chocante é o fato de Deus se submeter a este tipo de humilhação, ao invés de acabar com esta dominação gentílica sobre seu povo, para mostrar o poder de sua encarnação. 

Fato é que, Jack Miles chega à conclusão que Deus repudia, com suas atitudes por intermédio de Jesus, seu passado guerreiro. Deus não havia mudado seu modo de pensar, pois punição ainda era punição para ele, e recompensa ainda é recompensa; só que a entrega de uma e outra acontecerá no céu e não na terra. O marco distintivo do ensinamento de Cristo, é a frase "oferece a outra face". Mas, será que Deus faz mesmo assim? Jack Miles, afirma que Deus, na verdade está em mudança. Porém, qual é a razão de sua mudança? Não há resposta para tal, segundo o autor! Simplesmente Deus quis mudar. Quando Jesus diz "eu porém vos digo", para Miles é uma revisão do que Deus havia dito no passado, ou seja, é a prova da mudança de opinião da parte de Deus. Porque Deus, ao invés de agir como no passado, diferenciando uma nação especial das demais, agora nivela a todos? A resposta de Jack Miles é que na maior crise de sua vida, Deus faz da terrível necessidade uma virtude heróica. O autor do livro em apreço, diz que Deus, na verdade, não pode ser respeitado pelo seu poder apresentado aos judeus da época de Jesus. Ele pode, no máximo, ser honrado por serviços prestados no passado, pois, a Segunda parte da promessa de punição-e-reabilitação de Deus nunca foi cumprida.

Assim, em vez de declarar sem disfarces ser incapaz de derrotar seus inimigos, Deus pode declarar que não tem inimigos, que ele agora se recusa a reconhecer qualquer distinção entre amigo e adversário. Miles, diz que isto não custou nada a Deus, e que além disto, Ele impôs sua própria carga sobre nós, ensinando-nos a amarmos nossos inimigos.

Deus, na verdade, estava se desarmando, segundo Miles. O autor ainda cita que em Daniel 7, tem a visão dos reinos: babilônico, medo, persa e grego (segundo a simbologia de cada animal apresentado na visão). Assim, o quinto reinado seria o de Deus, e isto não aconteceu no N.T. Schweitzer também afirmou que Jesus acreditava, que por sua própria morte, Roma cairia, que a história terminaria e o Reino de Deus seria estabelecido até o final dos tempos.

Para Jack Miles, os judeus tinham que reconhecer o óbvio, Deus não estava atrasado em suas ações guerreiras, na realidade, Ele não era mais o Deus guerreiro. Assim como Deus se priva de dar o direito de alguém exigir-lhe que volte a ser o que era no passado, Deus também não exige mais de sua nação antes escolhida, que ajam dentro de sua lei passada! Deus isenta-os da lei, pois Ele mesmo se isentou de ser aquele tipo de legislador.

Como foi que o guerreiro divino acabou pregando o pacifismo? Miles sugere a seguinte resposta, que Deus criou uma nova virtude humana a partir de sua necessidade divina. Encontrou um modo de transformar sua derrota em vitória, mas a derrota veio primeiro. O preço do pacifismo de Deus, segundo o autor, foi o assassinato de João Batista.

O representante de Israel, o judeu devoto por excelência, é João, que ouve a triste notícia de Deus, que as promessas da aliança não serão mantidas, ou que serão mantidas de uma forma totalmente diferente, a ponto de tornar-se em nova aliança.

Subitamente, Jack Miles dá uma freada em sua tese do processo de mudança de Deus, a afirma que alguns de seus traços antigos ainda subsistem.

Sua ruptura com a violência não implica renúncia a todas as formas de resistência. A prostituta que beija-lhe os pés, na realidade, ensina-lhe o poder da vítima sobre o agressor. Herodes mata João Batista, mas fica atormentado das idéias, com medo de João retornar à vida.

Roma tentou empregar a morte como meio de entretenimento, e isto chocou os judeus, porém, os judeus cristãos chocaram de igual modo os romanos, tornando o martírio em forma de protesto e até mesmo de honra (segundo o professor Jorge Pinheiro). A tortura passa a não demonstrar apenas coragem, mas também passa a funcionar como meio de mudar a mente do torturador. Apesar de não ser essa a promessa de Deus aos judeus, Ele agora os ensina a vencer seus opressores sendo cordeiros.

Quando Jesus acalma a tempestade, está demonstrando a marca distintiva de Deus, que é o poder sobre o mar. Isto trás as pessoas mais para perto de si, pela curiosidade do "quem é este". Porém, quando ele fala em beber sangue, muitos o abandonam. Parecia-lhes que Jesus estava ensinando o canibalismo. O sangue sempre era proibido como alimento aos judeus.

O cordeiro, para ser sacrificado, precisava ter sido esgotado de seu sangue, principalmente se este fosse ser servido como alimento. A vida está no sangue. Porém, aqui está um simbolismo, pois o cordeiro literal não tinha o poder de dar a vida ao ofertante, enquanto o Cordeiro de Deus - Jesus - tinha tal poder, por isto, seu sangue poderia ser bebido - simbolicamente - na Ceia do Senhor.


3. O senhor da blasfêmia


Em primeiro lugar, para confirmar isto, Jack Miles cita que Ele, flagrantemente, viola a lei do descanso no Sábado.

A resposta mais conflitante deste capítulo, parece, foi a que seguiu-se à seguinte pergunta: "Mas é porque Jerusalém está rejeitando Deus encarnado que ele os abandonará aos romanos?" Respondendo a tal inquirição, Miles diz que também é possível, do mesmo modo, que seja o contrário. Como Deus sabe que abandonará Jerusalém aos romanos, deve arranjar para que Jerusalém o abandone aos romanos primeiro.

Quando Ele recusa condenar uma adúltera, pela lei que Ele mesmo estabelecera, para Miles é uma amostra de que Ele se tornou mais misericordioso. Na verdade, o autor diz que com este ato de não condenar aquela mulher pela Lei, também deixará de condenar Israel pela Lei. O Senhor Deus é, de fato, réu, e sabe do que pode ser acusado, mas sua maneira de pedir misericórdia é difundir a misericórdia. Em poucas palavras, Miles diz que diante de seu povo pecador porém sofrido, Deus pode não só ser misericordioso, como também penitente. Se Jesus parece condenado, só pode ser porque Deus condenou a si próprio.

Em João 10:11-21, Jesus mostra que, na realidade, sua morte era um suicídio em benefício de todos. Este tipo de suicídio, Dietrich Bonhoeffer assevera como desculpável diante de Deus, em seu livro "Ética", dizendo: "O ser humano pode sacrificar sua vida física em favor de outrem, pois é livre para morrer. (...) Esta liberdade de morte está condicionada no sentido de que o alvo não seja a destruição da vida, mas, o bem visado no sacrifício." (Dietrich Bonhoeffer. Ética).

Na sua morte, Deus na verdade não está derrotando Roma, mas sim, o poder afligidor de seu verdadeiro opressor, o Diabo, e na sua ressurreição, está vencendo o império da morte e não o império romano. Prova de que sua morte, na realidade estava dentro de seus planos, é que, primeiro ele inclina sua cabeça, e depois morre. Normalmente o processo é o contrário quando a morre-se, pois o inclinar de cabeça é a conseqüência da morte. Assim, a teologia da expiação conservadora, entra em atrito com esta afirmação, pois não é mais Deus sacrificando Jesus, mas sim, Deus sacrificando-se em Jesus.

Com isto, Deus resolve a grande crise em sua vida, pois derrotando César, Ele poderia recuperar a terra de Canaã, mas essa não é a guerra que ele escolhe lutar. Ele escolheu, em vez disso, derrotar Satã e, assim, derrotar a morte em si mesma e levar seu povo para a nova terra prometida da vida eterna.

Miles diz que Jesus é como um político astuto, que responde à pergunta que preferiria tivesse sido feita, ao invés da pergunta exposta pelos que lhe rodeiam. Assim, Jesus leva seus ouvintes a três assuntos direcionados, os quais são: o adultério, o suicídio e a escravidão. Por causa desta habilidade de Deus, de mudar de assunto sem ninguém se tocar, o autor do livro comentado aqui, diz que o monumental assunto central de toda a história israelita foi mudado com sucesso. A pergunta irrespondível foi abandonada deliberadamente. Embora o preço completo ainda esteja por ser pago, a crise na vida de Deus foi resolvida.

O novo mandamento de Deus, passa a ser a bondade com os estranhos. É como se o calendário tivesse voltado para o sexto dia da criação. E Deus, não o homem, tivesse o direito de recomeçar sem os erros iniciais dantes cometidos. Aqui Ele tem o direito de reconstruir a própria identidade, pois na passada, Ele não conseguiu se firmar. Sob o novo regime, ainda há distinções de povos, porém, estas distinções deixam de ser étnicas e passam a ser éticas. A destruição de seus inimigos, assim, deixa de ser no desenvolvimento da história, e passa para o fim da mesma. O crescimento do joio junto ao trigo, passa a ser a resolução da crise na vida de Deus. Neste novo regime, a adoração à Deus torna-se dependente da bondade aos estranhos. 

Como sinal de sua nova maneira de agir, de sua nova vitória, não contra Roma, mas contra a morte, ele ressuscita a Lázaro.


4. O cordeiro de Deus


Esta é a mudança na mente de Deus. Ele não é mais o sacrificador, mas o sacrificado. Deus era responsável pelas ações nacionais e internacionais, diferentemente dos deuses pagãos, que se dividiam nestas funções. Agora, na nova aliança, Ele passa a ser Deus internacional, indiferente ao que sofre uma nação, seja ela quem for. O Deus da guerra torna-se o Deus da sabedoria. Deixa suas ações concretas para empenhar-se muito mais em ações abstratas. Para Miles, esta inatividade militar de Deus é uma saída para que não o consideremos como fracassado. 

Miles escreve que o poder de Satanás é a explicação do porque Deus não manteve suas antigas promessas aos judeus. É Satã quem deve finalmente ser dominado; é ele quem deve finalmente ser forçado a reconhecer a manifesta superioridade do Senhor. na instituição da Páscoa, no Egito, Deus queria ser reconhecido como o Senhor dos Exércitos, na última Páscoa de Jesus, ele escolhe desempenhar o papel de cordeiro pascal.

O que na realidade complicou a vida humana, não foi a implicabilidade do pecado de Adão e Eva, mas sim, a implicabilidade da maldição que Deus lançou sobre eles. Para tal, antes Deus mandava que lhe oferecessem sacrifícios, em Jesus, Ele é o sacrifício. Deus vence, com isto, o sistema mundial entregue a Satanás, e não o mundo em si, com seus reinos e reis.

Jesus, assim como os patriarcas do A.T. faz seu discurso antes de sua morte. Os discursos dos antepassados judeus, eram proféticos e didáticos, assim com o de Jesus. Porém, o de Cristo é bem diferente em conteúdo. Ele recorre, para o ensino profético e didático, ao gesto teatral de uma ação ritual: 1. Ele lava os pés de seus discípulos; 2. Ele prevê traição, mas prega amor; 3. A Ceia do Senhor (aqui é o porque o sangue pode ser bebido simbolicamente, pela vitória contra a morte); 4. Tende bom ânimo, eu venci o mundo (resistindo a afronta).

Jesus, então, é preso, julgado, açoitado e condenado. Com isto, ele cria um perfil não militar, para Miles, de sucesso político, que é o de ser bem-sucedido na paz. Desta forma, não poderão mais os povos rirem do povo de Deus quando este passar pelo ridículo, pois foi pelo ridículo que seu Deus também passou e suportou! Por mais blasfemo que possa parecer a um judeu, Ele é crucificado como o Rei dos Judeus.

Ele volta à vida, se corporifica, ascende aos céus e se casa. É assim que Jack Miles define os próximos passos de Jesus. Quando Jesus volta à vida, ele faz o mesmo papel que Gabriel fez a Daniel, o de exegeta. Assim, Miles chama a entronização do Cordeiro de Deus de uma comédia, de ridícula, pois mais parece uma exegese forçada para ele. Ainda mais no ponto onde há uma referência ao casamento de Cristo com a Noiva, que como tantas comédias, termina em casamento. 

A mudança da mente de Deus é o grande assunto da Bíblia Cristã, segundo o autor em deste livro comentado. Deus quebrou a sua promessa, para Miles, porque na hora certa não conseguiu ir adiante, como se tudo tivesse fugido de seu controle. Desta forma, Deus teve de aprender a como vencer na derrota. 


Epílogo


O Jesus ao qual Jack Miles tratou neste livro, como ele explica em seu epílogo, é o Jesus literário e não o histórico. O Jesus literário não passa pela problemática do histórico, pois o literário é tanto divino quanto humano. A crítica histórica lê a Bíblia como a autocaracterização de um autor. Já a crítica literária está livre para beber o vinho.  Para o autor, Deus Filho não é absolutamente o tipo de homem que alguém esperaria que Deus Pai se tornasse. A questão é que Deus tinha algo tão chocante a dizer, que só poderia dizê-lo humilhando-se a si mesmo. Ele apenas substituiu uma esperança vã, firmada erroneamente por ele mesmo, por uma que ainda pode ser realizada. Para tal, como Deus ele não pode parar de existir, então tomou a forma humana para dramatizar a substituição de sua mensagem, morrendo, daí ressurgindo com novas promessas!

Os exegetas cristãos receberam um tipo de convite para ouvir o A.T. no N.T. de modo harmônico. Portanto, a apreciação literária cultiva referências internas, de preferência a referências externas. Fazendo assim, têm-se feito o que os autores do próprio N.T. fizeram. A Bíblia, para a crítica literária é como uma janela de vitral (rosácea), porém, não devemos ver através dela, mas sim, ela. Rudolph Bultmann afastou-se da tese reformada do sola scriptura e definhou-se pelo pensamento crítico do sola fide. Porém, Schweitzer já havia seguido este caminho anteriormente. 

Os pré-modernos ensinaram a não vermos através da Bíblia. Pois esta, deveria passar pelo crivo do se é verdadeira ou não. A partir do momento que é tida como verdade, a mente está livre para explorar a Bíblia.

Como disse o próprio Jack Miles: "Não há nada a ser feito no Davi de Michelangelo; o cinzel já o tocou pela última vez. (...) O que atrai os espectadores, crendo ou descrendo, para a rosácea da Bíblia, não é o que pode ser visto através dela, nem como os vidros foram coloridos e juntados, mas o que o vitral mostra em si mesmo e por si mesmo, e o que todos estes fragmentos recortados de luz e cor, operando juntos, fazem acontecer atrás dos olhos do observador".

1   2   3   4   5   6   7   8   9   10   11   12   13   14   15
16   17   18   19   20   21   22   23   24   25   26   27   28   29

Nenhum comentário:

Postar um comentário