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sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

XVIII - JESUS, MAGO OU CÍNICO

Parte XVIII
JESUS, MAGO OU CÍNICO
 O título pode parecer grosseiro, mas traduz uma inquietação dos meios acadêmicos e científicos nos Estados Unidos e Europa. A historiadora brasileira Tânia de Fátima Rocha aborda o tema a partir de um clássico da historiografia do Jesus histórico.


A resposta encontra-se no livro "O JESUS HISTÓRICO, A vida de um camponês judeu no Mediterrâneo" de John Dominic Crossan, cuja primeira edição em português é da Imago (1994).

Crossan é professor de Estudos Bíblicos na DePaul University, Chicago. É autor de vários trabalhos acadêmicos sobre Jesus, incluindo "The Cross that spoke", que recebeu o Premio de Excelência da Academia Americana de Religião. 

O livro de Crossan é fruto de uma pesquisa histórica rica e detalhada que tem como objetivo dar subsídios para compreendermos o panorama histórico nos tempos de Jesus. Como era o lugar onde Jesus vivia? Que classes sociais existiam? Como se relacionavam? Como as pessoas desta sociedade percebiam Jesus e suas mensagens? Estas e outras questões são respondidas por Crossan nesta obra que é fruto de rigorosa pesquisa científica.

Sua preocupação não é com o Cristo, ou seja, com o caráter divino de Jesus, mas com o homem, sua cultura, a economia de sua época, as relações socia

is que envolviam a sua comunidade. O autor parte do princípio de que há uma sociedade mediterrânea com características próprias, baseada numa forte tendência à urbanização, desprezo pelo modo de vida do camponês e pelo trabalho manual, nítida estratificação econômica, geográfica e social; instabilidade política e uma tradição de Estados fracos, uma rígida segregação sexual; uma tendência a se apoiar em unidades mínimas de parentesco, um código de honra e vergonha que define não só o comportamento sexual, mas também a reputação pessoal, etc. Nesta cultura "a honra, mais do que o valor que uma pessoa tem aos seus próprios olhos, é o valor que ela tem aos olhos da sociedade". 

Nazaré, a cidade onde Jesus vivia era uma aldeia profundamente judaica, com menos de 200 anos no séc. I, cuja atividade principal era a agricultura. Apesar de afastada das trilhas mais freqüentadas, situava-se dentro de um contexto urbano com uma população de cerca de 30.000 habitantes. Fazia parte da periferia romana, constantemente arrasada pela guerra, cujo centro, Roma, era uma cidade imperial que exportava a violência para outro lugar e dava a isso o nome de lei e de ordem, ou até mesmo de paz.  Havia acentuada desigualdade social, onde a classe dos artesãos englobava cerca de 5% da população, formada de camponeses que tinham perdido as sua posses e cujos filhos, portanto, não tinham direito a uma herança. A renda média de um artesão não era tão alta, aparentemente, quanto a de um camponês. Daí, então, a sua posição inferior na hierarquia de poder e privilégio, cuja principal forma de riqueza é a propriedade da terra. Nesta condição incluía-se a família de um carpinteiro como a de Jesus.

Dentro deste contexto, reduzidos à impotência pelo poderio militar romano, os palestinos voltaram-se para o velho sonho milenarista. A salvação viria através de um líder que, apesar de ser humano e agir neste mundo, teria uma aura divina. Assim, os movimentos apocalípticos são uma reação a um profundo ataque à integridade cultural, a uma ameaça de ordem político-religiosa e socioeconômica. 

Surgem movimentos como o dos cínicos e estóicos que buscavam a felicidade através da liberdade interna e da auto-suficiência pessoal. O estoicismo procurava chegar lá através de um desapego às coisas, já o cinismo pregava um total abandono do mundo, buscavam a felicidade através da liberdade. Tinham uma aparência diferente daquela considerada normal pelos padrões sociais da época, de modo a serem reconhecidos como propositalmente divergentes. Tinham uma opção anticultural pela pobreza que fazia com que não tivessem moradia fixa, levando uma vida itinerante simbolizada pelo uso do cajado.

Surgem também os movimentos taumatúrgicos, ou seja, movimentos realizados pelos chamados magos (alguém que pode fazer com que o poder divino se manifeste diretamente através do milagre pessoal, e não indiretamente através do ritual comunitário), representam uma reação religiosa divergente. Apesar de procurarem acabar de imediato com o sofrimento de um individuo, e não de um grupo, a sua atividade muitas vezes representa uma oposição radical ao sistema político-religioso estabelecido, seja ele local ou colonial. Neste caso faziam oposição à religião oficial dos sacerdotes judaicos. Os vários tipos de manifestantes, profetas, bandidos, messias e revolucionários, são representantes típicos de membros das classes desfavorecidas na Palestina do século I. O milenarismo popular da classe camponesa resultou em ações e foram vítimas de uma reação brutal e sangrenta pelas autoridades.

Um outro movimento social, é o banditismo social que surge em qualquer sociedade baseada na agricultura, onde há uma enorme quantidade de camponeses e trabalhadores sem terra que são governados, oprimidos e explorados por representantes de outra classe social. Movimento que já estava com meio caminho andado para se tornar uma revolução.

Já há relatos a respeito de bandidos no inicio de 47 antes da era cristã, depois de manifestantes e messias em 4 antes e.C., sendo que os profetas só aparecem a partir de 30 e.C. Em termos de violência, para os onze casos de banditismo há dez casos envolvendo profetas, e para os cinco exemplos de messianismo, há sete incidentes com manifestantes.

O homem e o contexto histórico 


Será que aquele homem que pregava a beira do lago era um visionário apocalíptico? Como Jesus falava de si mesmo? 

O reino de Deus é um grupo de pessoas sob o controle divino e, enquanto um ideal, isso transcende e condena todo tipo de poder humano. O reino tem a propriedade de expandir-se e fixar-se assim como na parábola da mostarda e do joio.O importante, então, não é possuir uma intuição especial para poder ver o Reino do futuro, e sim ter a habilidade de reconhecer o Reino como uma realidade presente. Para Jesus, um reino de mendigos e ervas daninhas é um reino do aqui e agora. A expressão "reino de Deus" podia ser compreendida do ponto de vista apocalíptico, podia haver ou não uma revolta armada, existir ou não um messias, e ocorrer ou não uma destruição cósmica, mas com certeza um dia haveria um ato de poder divino transcendental que, depois de destruir todos os perversos impérios pagãos, estabeleceria o domínio da justiça e da santidade, que regeria a humanidade para sempre. Também podia ter um caráter sapiencial e representar tanto uma ética para o presente, quanto uma critica radical dos abusos do rei e do império. Jesus tem um a visão sapiencial, seu reino é realizado ao invés de apenas proclamado. 

O reino de Jesus era composto de gente sem importância ou mesmo indesejável, representava, sem dúvida alguma, uma proposta profundamente igualitária. Sendo assim, ele tornava todas as distinções de ordem sexual, social, política e religiosa completamente irrelevantes e anacrônicas. Em outras palavras ele coloca o reino contra o Mediterrâneo. Ou contra muito mais que o Mediterrâneo. 

Antes, durante e depois de Jesus, os camponeses da Palestina estavam num estado de distúrbio político. O ideal de reino em Jesus representa um modo de vida para o presente imediato, o que permite ver o reino não como um sonho pessoal, mas como um plano coletivo. Assim magia está pra a religião assim como o banditismo esta para a política. Enquanto o banditismo contesta a legitimidade do poder político, a magia contesta a do poder espiritual. A religião é a magia oficial e aprovada; a magia é uma religião extra-oficial e censurada. O mesmo ato que serve como sinal de divindade para alguns pode servir como prova da influencia maligna dos demônios para outros. No que diz respeito aos critérios,o mais importante não são as ações, mas sim a maneira como elas são avaliadas. O mesmo homem podia ser chamado de [divino], ou filho de deus, pelos seus admiradores ou de mago pelos seus inimigos. 

Jesus estava iniciando uma missão rural ao invés de uma missão urbana. Podemos considera-la como um exemplo de cinismo judeu e rural. O movimento evitava deliberadamente a auto-suficiência, buscando um tipo especial de comensalidade junto àqueles que procurava curar. Os missionários não carregam alforge porque não pedem esmolas, comida, roupas, nem qualquer outra coisa. Eles compartilham um milagre e um reino, recebem em troca uma mesa e uma casa, o que na opinião do autor e a essência do movimento original de Jesus; um igualitarismo em que se compartilha de bens espirituais e materiais. A comensalidade, na verdade, era uma estratégia para reconstruir a comunidade camponesa sobre princípios radicalmente diferentes daqueles ditados pelo sistema de honra e vergonha, apadrinhamento e clientelismo. Um igualitarismo religioso e econômico que negava a estrutura hierárquica e patronal da religião judaica e do poder romano. 

O Jesus histórico possuía ao mesmo tempo uma visão ideal e um programa social. 

Para concluir, a busca do Jesus histórico é reconstituição, não tem a pretensão de ser a verdade, mas de contribuir para a elaboração de nossa visão histórica sobre Jesus, lembrando que toda história é sempre reconstituição o que não invalida o projeto de conhecermos um pouco mais sobre a vida de um camponês judeu no Mediterrâneo.

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