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sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

O TOTALMENTE OUTRO

II. O TOTALMENTE OUTRO

O corpo bultmaniano é um corpo impressionante de livros e artigos, sendo que boa parte dele é dedicada a uma exegese altamente técnica do Novo Testamento.

A desmitologização, proposta por Bultmann, trata do problema especial de procurar perceber a proclamação do N.T. no contexto do quadro mítico do mundo no século I, e indicar como este quadro mítico do mundo não é necessário ao modo específico de entender a existência expressada ali.
A ação de Deus está oculta a todas as vistas, exceto aos olhos da fé. Somente os acontecimentos chamados naturais, profanos (mundanos), são visíveis a todos os homens e suscetíveis de verificação. Em Crítica da Razão Pura, Immanuel Kant (1724-1804) sustentava que o único conhecimento disponível à humanidade é o que podemos perceber pelos sentidos. Ele não abria espaço à possibilidade do conhecimento revelado ou sobrenatural. A confissão de fé no Deus criador não é uma garantia, dada de antemão, que me permita atribuir qualquer acontecimento à vontade de Deus. Crer assim, segundo Bultmann, é panteísmo. A fé que fala de Deus como ato não pode defender-se contra a acusação de ser uma ilusão. A idéia do Deus Onipresente e Todo-Poderoso só se faz real em minha existência pessoal por sua Palavra, pronunciada aqui e agora. Por conseguinte, devemos afirmar que a Palavra de Deus só é o que é no instante em que é pronunciada. A Palavra de Deus não é um enunciado atemporal, senão uma palavra concreta dirigida aos homens aqui e agora.  Podemos, pois, dizer em conclusão que o panteísmo é, certamente, uma convicção prévia, uma visão geral do mundo, que afirma que todo acontecimento que se produz no mundo é obra de Deus, porque Deus é imanente ao mundo. (Paulo, então, foi panteísta? Rm. 1:20)  Jesus concebia o advento do reino de Deus como um tremendo drama cósmico. A primitiva comunidade cristã entendeu o reino de Deus no mesmo sentido que Jesus. Ela também esperava o advento do reino de Deus imediatamente. Mesmo Paulo pensava estar ainda vivo quando chegasse o fim deste mundo e os mortos ressuscitassem. O cristianismo tem conservado sempre a esperança de que o reino de Deus virá em um futuro imediato, ainda que o tenha esperado em vão. Podemos citar, assim, Marcos 9:1, cujas palavras não são autênticas de Jesus, senão que lhe foram atribuídas pela comunidade primitiva.

Os mitos atribuem uma objetividade mundana a aquilo que é não-mundano. Em geral, a ação de Deus na natureza e na história permanece tão oculta ao crente como ao não-crente.  Esta esperança de Jesus e da primitiva comunidade cristã não se cumpriu. Existe ainda o mesmo mundo e a história continua. O curso da história tem desmentido à mitologia. Porque a concepção do reino de Deus é mitológica, como o é a do drama escatológico.
O sistema, repudiado por Barth nos seus anos posteriores, é precisamente o sistema ao qual Bultmann adere com toda a força: uma “afirmação da ‘diferença qualitativa infinita’ entre o tempo e a eternidade nas suas várias implicações negativas e positivas”.
Conforme indica Ogden, Deus é a realidade que infinitamente transcende tudo o que, paradoxalmente, está ao mesmo tempo relacionada com todas as coisas. Porque Ele é o totalmente Outro, porém, nada na natureza ou na história – nada, por exemplo, que o homem é ou faz – pode diretamente revelar a Deus. Nas palavras do próprio Bultmann: “Deus é o Criador, i.é., não está imanente nas ordenanças do mundo, e nada que se encontra conosco como fenômeno dentro do mundo é diretamente divino”. A fé cristã somente pode dizer: “Creio que Deus atua aqui e agora”, mas Sua ação é oculta, porque não é diretamente idêntica ao acontecimento visível. Ainda não sei o que Deus faz, e talvez nunca chegue a sabê-lo, mas creio firmemente que é importante para minha existência pessoal e devo perguntar-me o que é que Deus me diz. Talvez me diz tão somente que devo sofrer em silêncio. Toda a concepção do mundo que pressupõe tanto a pregação de Jesus como o N.T., é, geralmente, mitológica, por exemplo, a concepção do mundo como estruturado em três planos: céu, terra e inferno; o conceito de poderes sobrenaturais no curso dos acontecimentos e a concepção dos milagres, especialmente a idéia da intervenção de uns poderes sobrenaturais na vida interior da alma, a idéia de que os homens podem ser tentados e corrompidos pelo demônio e possuídos por maus espíritos. A esta concepção do mundo, qualificamos de mitológica, porque difere da que tem sido formada e descoberta pela ciência, desde que esta se iniciou na antiga Grécia, e logo foi aceita por todos os homens modernos. Em todo caso, a ciência moderna não crê que o curso da natureza possa ser interrompido ou, por assim dizer, perfurado por uns poderes sobrenaturais. Bultmann chega a nos perguntar se por acaso temos lido alguma vez que os acontecimentos políticos, sociais ou econômicos sejam ocasionados por uns poderes sobrenaturais como Deus, os anjos ou os demônios!

O homem moderno já não pode aceitar estas concepções mitológicas de céu e inferno, porque, para o pensamento científico, falar de “acima” e “abaixo” no universo tem perdido toda a sua significação, ainda que a idéia da transcendência de Deus e do mal segue sendo significativa.

Podemos acreditar que Deus estava operante num evento, mas não podemos demonstrar a realidade de Deus mediante um apelo àquele evento. A história, como a natureza, é uma continuação fechada de causas e efeitos, onde até mesmo os motivos humanos são suscetíveis à explicação causal. Bultmann assevera ainda que: “Este aspecto fechado significa que a continuidade dos acontecimentos históricos não pode ser rompida pela interferência de poderes sobrenaturais e transcendentes, e que, portanto, não há ‘milagre’ neste sentido da palavra. Semelhante milagre seria um evento cuja causa não se achasse dentro da história. Ao passo que, por exemplo, a narrativa do A.T. fala de uma interferência por Deus na história, a ciência histórica não pode demonstrar semelhante ato de Deus, mas meramente percebe que há aqueles que crêem na interferência.”

Isso é igualmente válido pelo que se refere ao moderno estudo da história, o qual não tem em conta nenhuma intervenção de Deus, do diabo ou dos demônios no curso da história. Nada ocorre, por acaso, que não tenha uma motivação racional. Naturalmente, subsistem ainda numerosas superstições nos homens modernos, mas são exceções ou algumas anomalias.

A invisibilidade de Deus exclui todo mito que intente fazer visível a Deus e sua ação; Deus mesmo se esconde às olhadas e à observação. O homem que deseja crer em Deus deve saber que não dispõe absolutamente de nada sobre o qual possa construir sua fé, e que, por dizê-lo assim, está se apoiando no vazio.
O conselho de Bultmann, enfim, é que “os que têm a visão moderna do mundo, que vivam como se não tivessem nenhuma”.
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