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sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

A DESMITOLOGIZAÇÃO

III. A DESMITOLOGIZAÇÃO
A linguagem do universo do N.T. é mítica. A essência do mito está em conceber o supra-terreno e divino como se fosse terreno e humano. A Bíblia expressa o que o autor crê, e não o que realmente aconteceu.
A linguagem do mito perde seu sentido mitológico quando serve para expressar a fé. O que devemos fazer, para Bultmann, é interpretar essa mitologia. A teologia tem diante de si a tarefa de reler o N.T., desmitologizando o mito. Este seria o único caminho possível para a proclamação do N.T. Então, torna-se inevitável a pergunta: é possível que a pregação de Jesus acerca do reino de Deus e a pregação do N.T. em sua totalidade tenham ainda importância para o homem moderno? Isso é sem sentido e impossível, para Bultmann. A pregação do N.T. anuncia a Jesus Cristo, não somente sua pregação acerca do reino de Deus, senão, antes de tudo, sua pessoa, que foi mitologizada desde o mesmo início do cristianismo primitivo. O Próprio Jesus entendeu-se à luz da




mitologia. Seja como for, a comunidade primitiva o viu assim, como uma figura mitológica. A proclamação cristã de hoje se encontra diante da pergunta se ela espera do ser humano a aceitação da concepção mítica do universo passada, quando o conclama à fé. Seria então a tarefa da teologia desmitologizar a proclamação cristã. A concepção mítica do universo não é, como tal, nada especificamente cristão, mas é simplesmente a concepção do universo de uma época passada, ainda não moldada pelo pensamento científico. A primitiva comunidade também considerava a pessoa de Jesus à luz da mitologia quando diziam que havia sido concebido pelo Espírito Santo, que havia nascido de uma virgem e que era o Filho de Deus de uma forma metafísica. Tais concepções são manifestamente mitológicas, porque eram muito difundidas nas mitologias anteriores dos judeus e gentios, e depois foram transferidas à pessoa histórica de Jesus.  Nenhum ser humano adulto imagina Deus como um ser existente em cima, no céu; sim, o “céu” no sentido antigo sequer mais existe para nós. Tampouco existe o inferno, o mundo inferior, etc. Eliminadas estão assim as histórias da ascensão de Cristo ao céu e descensão ao inferno. Eliminada está a expectativa de um “filho do homem” vindo sobre as nuvens do céu e do arrebatamento dos crentes no ar, ao seu encontro.  Para Bultmann, a revelação vem em símbolos que devem ser decodificados. Usando o termo dele, devem ser desmitologizados. O homem moderno não entende que ele esteja destinado a sofrer o destino de morte de um ser natural, em consequência da culpa de seu ancestral, pois é algo que não tem cabimento, porque só conhece a culpa como ação responsável. É, pois, a Palavra de Deus a que chama o homem à verdadeira liberdade, à livre obediência, e a desmitologização não tem outro objetivo que aclarar esta chamada da palavra de Deus. Quer interpretar a Escritura interrogando-se pelo significado mais profundo das concepções mitológicas e libertando a palavra de Deus de uma visão do mundo já superada.
A figura do Anti-cristo tal como nos é descrita, por exemplo, na Segunda Epístola aos Tessalonicenses 2:7-12, constitui uma figura inteiramente mitológica. 
Além da razão teológica para a desmitologização, há uma razão apologética. O homem moderno pensa de modo científico, em categorias rigorosamente causais. Através do conhecimento das forças e leis da natureza está eliminada a crença nos espíritos e nos demônios.
A desmitologização adota como critério para a interpretação da Escritura a visão moderna do mundo. Pois, a visão de mundo da igreja primitiva, é passada e obsoleta. O homem moderno não aceita mais a mitologia como verdade, pois seu pensamento foi modelado pela ciência e não tem nada de mitológico.
Quando uma apologética grosseiramente mal-orientada insiste na fé na realidade dos mitos bíblicos ao invés da fé no significado subjacente destes mitos, está colocando uma pedra de tropeço falsa no lugar do verdadeiro escândalo.
A mitologia é aquela forma de linguagem figurada em que aquilo que não é deste mundo, aquilo que é divino, é representado como se fosse deste mundo, e humano; “o além” é representado como “o aqui e agora”.
É um método de hermenêutica, que procura extrair a noz da significância compreensiva da casca de uma cosmovisão antiquada.
Seu alvo não é eliminar as declarações mitológicas mas, sim, interpretá-las.
A cosmovisão das Escrituras é mitológica e, portanto, inaceitável ao homem moderno cujo pensamento tem sido formado pela ciência e que deixou, portanto, de ser mitológico.
Para o homem de nosso tempo, a concepção mitológica do mundo, as representações da escatologia, do redentor e da redenção, estão já superadas e carecem de valor. Cabe esperar, pois, que realizemos um sacrifício do entendimento, um sacrificium intellectus, para aceitar aquilo que sinceramente não podemos considerar verídico – somente porque tais concepções nos são sugeridas pela Bíblia? Ou bem temos que passar por alto os versículos do N.T. que contêm tais concepções mitológicas e selecionar as que não constituem um tropeço deste tipo para o homem moderno? Devemos abandonar as concepções mitológicas precisamente porque queremos conservar seu significado mais profundo. Um princípio hermenêutico adequado, o modo certo de fazer as perguntas certas. É impossível restabelecer a concepção mítica do universo, depois que o pensamento de nó todos foi irrecorrivelmente moldado pela ciência.  Não se nega que a cruz, que a Igreja proclama, seja um “evento mitológico”, mas através deste evento – e somente através deste evento – Deus opera para salvar o homem da sua vida de inautenticidade.
Considerada como evento salvífico, a cruz de Cristo não é, portanto, um acontecimento mitológico; é um acontecimento verdadeiramente histórico, que tem sua origem num evento meramente histórico, na crucificação de Jesus de Nazaré. Assim, Cristo foi crucificado “por nós”. Não no sentido de uma teoria de “satisfação” ou de sacrifício vicário.
Podemos dizer então que Deus se “demonstrou” a Si mesmo pelos “feitos da redenção”? De maneira nenhuma. Porque o que nós chamamos feitos da redenção são, por sua vez, objeto de fé, e somente podemos compreendê-los pelos olhos da fé. Não podemos percebê-los fora da fé, como se esta, à semelhança das ciências naturais, pudesse apoiar-se em dados acessíveis à observação empírica. Certo é que os feitos da redenção constituem os fundamentos da fé, mas somente enquanto são percebidos pela mesma fé.
É suficiente dizer que a fé nasce do encontro com as Sagradas Escrituras enquanto Palavra de Deus, e que não é outra coisa que um simples escutar? A resposta, segundo Bultmann é afirmativa, pois para ele, a Palavra de Deus está “oculta” nas Escrituras.
Neste ponto o teólogo e pregador deve a si e à comunidade, bem como àqueles a quem deseja atrair para a sua comunidade, clareza e sinceridade absolutas.
O que sobra quando as “formas” são analisadas, aqueles segmentos solidificados de matéria biográfica que a igreja primitiva criou visando propósitos de propaganda? Virtualmente nada. Como resultado desta investigação, parece que o esboço da vida de Jesus, conforme é fornecido por Marcos e adotado por Mateus e Lucas, é uma criação editorial, e que, como consequência, nosso conhecimento real do decurso da vida de Jesus é restringido ao pouco que se pode descobrir nas cenas individuais que constituem a tradição mais antiga. Por conseguinte, supor que a antiga visão bíblica do mundo pode ser atualizada, não é mais que a formulação de um desejo. A desmitologização, com isto, invalida a Bíblia.
A máquina cósmica passa a ser o único terreno legítimo da investigação humana, pois além da máquina, nada podemos saber.
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