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terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

III - A PERSPECTIVA MISSIONÁRIA DO PENTECOSTES

Parte III
A PERSPECTIVA MISSIONÁRIA DO PENTECOSTES
Qual o propósito fundamental do Pentecostes de Atos 2? Seria o batismo do Espírito Santo, o dom de línguas, a edificação da igreja? O objetivo deste artigo é mostrar que apesar de válidas, nenhuma das alternativas acima mereceria uma resposta afirmativa como um fim em si mesma. Tentaremos mostrar a partir de agora que o batismo do Espírito Santo, o dom de línguas e a edificação do povo de Deus foram necessários em Atos 2, mas apenas como meio e não como fim do propósito fundamental de Deus para a igreja e o mundo.

A natureza e propósito do Pentecostes são eminentemente missionários. E Lucas prepara o cenário para apresentá-lo desta forma quando diz em Atos 2.5: "Ora, estavam habitando em Jerusalém judeus, homens piedosos, vindos de todas as nações debaixo do céu" (grifo nosso). Para uma melhor compreensão deste tema, acreditamos que seria interessante traçarmos primeiro um panorama geral da festa de pentecostes, segundo era comemorada nos tempos do Antigo Testamento. Vejamos qual a finalidade desta festa e o que ela representava, para em seguida tratarmos do Pentecostes de Atos 2.



1. A FESTA DE PENTECOSTES NO ANTIGO TESTAMENTO

A festa de pentecostes fazia parte (juntamente com a dos tabernáculos e a páscoa) da tríade das festas anuais mais importantes da lei mosaica. Três festas que celebravam aspectos do êxodo, o estabelecimento da aliança e o recebimento da terra prometida. Nelas exigia-se a presença de todos os homens de Israel que vivessem dentro de um raio de 32km de Jerusalém, a não ser que fossem impedidos por motivo de enfermidade (cf. Ex 23.17; Dt 16.16). Jesus, como era cumpridor da lei, provavelmente comparecia anualmente às três festas tradicionais dos judeus.
A celebração da páscoa iniciava-se na tarde do décimo quarto dia do primeiro mês, em conjunto com a festa dos pães asmos, que começava no dia quinze e durava sete dias (cf. Lv 23.5-8). A páscoa comemorava a libertação de Israel do cativeiro egípcio. Os pães asmos relembravam as dificuldades da fuga apressada do Egito. 
A festa dos tabernáculos começava no décimo quinto dia do sétimo mês e continuava durante sete ou oito dias (cf. Lv 23.34-44). Seu propósito era fazer o povo recordar as peregrinações no deserto e regozijar-se pelo sucesso de todas as colheitas (cereais, frutas, vindimas, etc.).

Por ocasião da festa de pentecostes, também chamada de festa das semanas, das colheitas ou das primícias, apresentava-se a Deus as primícias da colheita do trigo ou da cevada como gratidão a Ele por ter dado ao povo a nova e boa terra. Era comemorada cinqüenta dias depois da páscoa; daí o nome pentecostes. Seus propósitos eram baseados em Levítico 23, Números 28 e Deuteronômio 16. 
O termo pentecostes deriva-se do grego penth/konta h(me/raj (cinqüenta dias); uma tradução da Septuaginta (a mais antiga versão grega do Antigo Testamento [séc. III a. C.]) da expressão hebraica MwIY mYi$iimfx (cf. Lv 23.16). 

A festa de pentecostes era proclamada como "santa convocação", durante a qual nenhum trabalho servil podia ser feito, e todo homem israelita era obrigado a estar presente no santuário (Lv 23.21). Nesta ocasião dois pães assados, feitos com farinha nova, fina e fermentada, eram trazidos dos lares e movidos pelo sacerdote perante o Senhor, juntamente com as ofertas de sacrifício animal, como as ofertas pelo pecado e pacíficas (Lv 23.17-20). Por ser um dia festivo (cf. Dt 16.16), nele os israelitas devotos expressavam 1) gratidão pelas bênçãos do cereal colhido e 2) um sincero temor a Deus (cf. Jr 5.24). 

No Antigo Testamento a festa de pentecostes não se limitava apenas ao Pentatêuco. Sua observância é indicada nos dias de Salomão (2 Cr 8.13) como o segundo dos três festivais anuais (cf. Dt 16.16). A festa de pentecostes também era observada pelos cristãos do Novo Testamento, mas somente como meio de evangelização. Lucas registra em Atos 20.16 que Paulo estava resolvido a não perder tempo na Ásia, e se apressava para estar em Jerusalém no dia de pentecostes. Em 1 Coríntios 16.8, o apóstolo propôs-se a permanecer em Éfeso até o pentecostes, visto que uma porta estava se abrindo para o seu ministério.

Com o passar do tempo, à festa de pentecostes foi-se acrescentando outros significados. Durante o período inter-bíblico e posteriormente a ele, a festa de pentecostes também passou a comemorar o aniversário da transmissão da lei dada por Deus a Moisés no Sinai. Mas não é só isso. Assim como a celebração das primícias, pentecostes também apontava para bênçãos maiores que Deus concederia no futuro, como por exemplo, a inauguração da igreja neotestamentária em Atos 2.2 


II. O DUPLO PROPÓSITO DO PENTECOSTES DE ATOS 2

Não é difícil percebemos que o relato do Pentecostes por Lucas teve dois propósitos fundamentais, sendo que o primeiro é mencionado para balizar e dar respaldo ao segundo. O primeiro propósito trata do contexto próximo e remoto da profecia bíblica e seu cumprimento. O segundo tem haver com a inauguração da igreja cristã e sua missão no mundo.

2.1. A profecia e seu cumprimento em Atos 2

2.1.1. Contexto remoto
Dentre as passagens bíblicas do Antigo Testamento3 que profetizaram o derramamento do Espírito Santo em Atos, a mais conhecida delas é a de Joel 2.28-32, justamente porque é a ela que Pedro faz menção na primeira parte de seu discurso em Atos 2.14-21, para explicar o pentecostes do Espírito aos céticos que não o entenderam ou zombavam dos que falavam em outras línguas, chamando-os de embriagados. 
Mas por que será que Pedro citou justamente Joel e não um profeta maior como Isaías ou Ezequiel? Além disso, como explicar, de um lado, as omissões e acréscimos que Pedro faz à passagem de Joel e como entender, por outro lado, os detalhes da profecia ditos por Pedro que não aconteceram em Atos 2 como, por exemplo, o fenômeno do sol se convertendo em trevas e a lua em sangue? 

Vejamos o texto: 
Então se levantou Pedro, com os onze; e, erguendo a voz, advertiu-os nestes termos: Varões judeus e todos os habitantes de Jerusalém, tomai conhecimento disto e atentai nas minhas palavras. Estes homens não estão embriagados, como vindes pensando, sendo esta a terceira hora do dia. Mas o que ocorre é o que foi dito por intermédio do profeta Joel: E acontecerá nos últimos dias, diz o Senhor, que derramarei do meu Espírito sobre toda a carne; vossos filhos e vossas filhas profetizarão, vossos jovens terão visões, e sonharão vossos velhos; até sobre os meus servos e sobre as minhas servas derramarei do meu Espírito naqueles dias, e profetizarão. Mostrarei prodígios em cima no céu e sinais em baixo na terra; sangue, fogo e vapor de fumo. O sol se converterá em trevas, e a lua em sangue, antes que venha o grande e glorioso dia do Senhor. E acontecerá que todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo (At 2.14-21).

Seria um equívoco de nossa parte supormos que entre a passagem de Joel 2.28-32 e o Pentecostes de Atos 2 não houvesse similitude alguma. É evidente que existem semelhanças entre as duas passagens. Por exemplo: nos dois casos o Senhor derrama o Espírito Santo sobre a comunidade reunida de Israel. No Pentecostes os judeus da dispersão estavam reunidos em um só lugar. Em seu discurso, Pedro afirma que após Jesus ressuscitar dos mortos, Ele foi exaltado à direita de Deus e "tendo recebido do Pai a promessa do Espírito Santo, derramou (e)ce/xeen) isto que vedes e ouvis" (At 2.33). O verbo e)ce/xeen vem de e/kxe/w (derramar) e é o mesmo usado pela LXX na tradução de "Eu derramarei" de Joel 2.28-32.4
E quanto ao uso da passagem de Joel por Pedro?
A profecia de Joel sobre o derramamento do Espírito Santo é uma das mais completas do Antigo Testamento. A citação de Pedro segue a LXX, mas com algumas pequenas alterações para adaptar a profecia ao seu contexto.5 O Dr. I. Howard Marshall alista quatro temas importantes da profecia de Joel em Atos 2. 
O primeiro tema da profecia, e o principal, segundo Marshall, é que Deus está para derramar o Seu Espírito sobre todos os povos, isto é, sobre todos os tipos de pessoas6, e não apenas sobre os profetas, reis e sacerdotes, como acontecia no Antigo Testamento. 

Um segundo elemento da profecia é a ocorrência de sinais cósmicos do tipo que se associa com os quadros apocalípticos do fim do mundo (cf. Ap 6.12). Aqui, podemos notar que Pedro alterou a expressão de Joel: "prodígios no céu e na terra", para prodígios em cima no céu e sinais em baixo na terra. Os sinais seriam provavelmente o dom de línguas e os vários milagres de cura que logo passariam a ser narrados. O que dizer, porém, dos prodígios? Se não aceitarmos que a referência diz respeito aos sinais cósmicos que acompanharam a crucificação (Lc 23.44,45), então teremos que entender que Pedro antevê os sinais que anunciarão o fim do mundo. Estes ainda são futuros e pertencem ao "fim" dos últimos dias, e não ao "começo" deles, que estava se realizando.
O terceiro elemento na profecia de Joel é o evento do qual estes sinais são a prefiguração. Para Joel, é claro, o Senhor era o próprio Javé. Para Pedro e Lucas surge a pergunta: Senhor, aqui, não significa implicitamente Jesus? Isto porque em Atos 2.36 Jesus será declarado Senhor.  Em quarto lugar, a profecia de Joel termina com uma promessa no sentido de que aquele que invocar o nome deste Senhor, isto é, apelar a Ele, pedindo socorro, será salvo. Para os cristãos, certamente, se tratava de procurar em Jesus a salvação (cf. Rm 10.13,14; 1 Co 1.2). Reconhece-se que, se Pedro citou o texto em hebraico, haveria clara referência a Javé, e, portanto, a aplicação a Jesus ficaria clara somente àqueles que ouviam ou liam o texto em grego.7


2.1.2. Contexto próximo

O Novo Testamento antecipa de modo vívido o que aconteceria em Atos 2. Lucas relata em seu Evangelho que João Batista pregava assim: "Eu, na verdade, vos batizo com água, mas vem o que é mais poderoso do que eu, do qual não sou digno de desatar-lhe as correias das sandálias; ele vos batizará com o Espírito Santo e com fogo" (Lc 3.16; cf. Mt 3.11). A palavra fogo nesta passagem refere-se ao Pentecostes mas também ao juízo final.8
Mais tarde, no final de seu Evangelho, Lucas volta a tratar daquela mesma promessa, agora dita pelo próprio Senhor Jesus. "Eis que envio sobre vós a promessa de meu Pai; permanecei, pois, na cidade, até que do alto sejais revestidos de poder" (Lc 24.49). E o Cristo exaltado derramou o Espírito Santo prometido que Ele recebeu de Deus Pai (cf. At 2.33).
Contudo, o contexto mais próximo que se pode ter do Pentecostes está exatamente no capítulo 1 do segundo livro de Lucas.
E, comendo (Jesus) com eles (seus discípulos), determinou-lhes que não se ausentassem de Jerusalém, mas que esperassem a promessa do Pai, a qual, disse 
ele, de mim ouvistes. Porque João, na verdade, batizou com água, mas vós sereis 
batizados com o Espírito Santo, não muito depois destes dias. Então, os que estavam reunidos lhe perguntaram: Senhor, será este o tempo em que restaures o reino a Israel? Respondeu-lhes: Não vos compete conhecer tempos ou épocas que o Pai reservou pela sua exclusiva autoridade; mas recebereis poder, ao descer sobre vós o Espírito Santo, e sereis minhas testemunhas tanto em Jerusalém como em toda a Judéia e Samaria a até aos confins da terra (At 1.4-8).
Jesus ordenou aos Seus discípulos que não se ausentassem de Jerusalém, enquanto não recebessem o batismo do Espírito. 
Só podemos entender adequadamente esta ordem à luz de seu contexto histórico. Após a sua ressurreição, Jesus instruiu o discípulos a retornarem à Galiléia (cf. Mt 28.10; Mc 16.7). E eles prontamente o fizeram, por duas razões. Em primeiro lugar, eles teriam a oportunidade de vê-lO novamente na Galiléia, conforme prometera. Em segundo lugar, eles não estavam nem um pouco interessados em permanecer em Jerusalém, o lugar onde os judeus mataram Jesus e que eles, os discípulos, também estariam correndo perigo de morte. É provável que depois da ascensão de Jesus os discípulos ficassem tentados a retornar à Galiléia, conforme já haviam feito antes (Jo 21). 
O lugar onde Jesus concluiu seu ministério terreno seria agora o ponto de partida de uma nova era. Dali, no dia de Pentecostes, Ele enviaria a Sua igreja como primícias e verdadeira testemunha de tudo o que Ele disse e fez, isto é, "que em seu nome se pregasse arrependimento para remissão de pecados a todas as nações, começando de Jerusalém" (Lc 24.47).
Por isso, logo após a Ascensão, os discípulos fizeram imediatamente o que Jesus mandou. Retornaram do Monte das Oliveiras para Jerusalém, e quando ali entraram subiram ao cenáculo, local onde o Senhor celebrou a ceia e por diversas vezes apareceu a eles. Lucas diz que no cenáculo "Todos estes (os onze, cf. At 1.13) perseveravam unânimes em oração, com as mulheres, com Maria, mãe de Jesus, e com os irmãos dele" (At 1.14).9
À luz dos textos de Atos 1.14,15 e 2.1 podemos notar que ocorreram três reuniões distintas em Jerusalém. É até possível que os cento e vinte de Atos 1.15 estivessem, todos eles, na reunião de Atos 2; porém, isso parece pouco provável porque o texto fala de uma casa (cf. At 2.1,2). Mas esta informação não é o que verdadeiramente importa. Importante mesmo é saber que a promessa de Atos 1.4-8 começava a se cumprir em Atos 2. 

3.2. A Igreja e sua missão


3.2.1. O nascimento da igreja cristã

O tempo entre a ascensão de Jesus e a espera dos discípulos para o derramamento do Espírito Santo foi curto, de apenas dez dias. Nas palavras de Jesus, o Pentecostes ocorreria "não muito depois destes dias" (At 1.5).

O contexto da inauguração da igreja cristã não poderia ser outro. Estavam presentes em Jerusalém judeus piedosos "vindos de todas as nações debaixo do céu" (At 2.5). 
Como os judeus estavam amplamente dispersos, era impossível para a maioria comparecer a todos os três festivais a cada ano. No entanto, um número surpreendente vinha, de fato, a Jerusalém para adoração nas três ocasiões. Como a viagem pelo Mediterrâneo era mais segura ao final da primavera, quando o Pentecostes era celebrado, esta festa normalmente trazia as maiores multidões para a cidade. Sua população, que normalmente era de cinqüenta mil habitantes, inflava para quase um milhão nesta época do ano.10

Lucas relaciona, em Atos 2.9-11, quinze nações do mundo antigo. Começa com as nações do leste (Partia, Media, Elam e Mesopotâmia), depois segue da Judéia à Ásia Menor (Capadócia, Ponto, Ásia, Frígia e Panfília), prossegue em direção à África (Egito, Líbia e Cirene) e continua até Roma, Creta e Arábia. Porquê a lista omite nações que obviamente deveriam ser mencionadas por Lucas, como Grécia, Macedônia e Cípria, não sabemos ao certo. O importante é saber que a intenção primordial do autor está bem evidente.
"Lucas parece agrupar as nações em categorias lingüísticas, pois seu objetivo no relato do Pentecostes é enfatizar que as boas novas transcendem as barreiras lingüísticas".11 Marshall fala de algo parecido quando diz: 

Basta, então, observar que a lista claramente visa ser uma indicação de que estavam presentes pessoas de todas as partes do mundo conhecido, e talvez que haveriam de voltar aos seus próprios países como testemunhas daquilo que acontecia. Todas elas, como adoradores de Javé, podiam perceber que os cristãos estavam celebrando as obras poderosas de Deus.12

Diferente do que muitas vezes vemos em nossas igrejas brasileiras, em Atos a igreja possui características bíblicas bem definidas. Consciente ou inconscientemente, muitas de nossas igrejas estão influenciadas pelo que se pode denominar de "mito da vida espiritual interior e individual" e "narcisismo eclesiátisco". 
Ely César, abordando o tema do propósito fundamental da inauguração da igreja cristã, diz com precisão:
A maneira como os primeiros cristãos compreenderam o Pentecostes atesta um fato básico: sem o Espírito não há proclamação possível, não há evangelho, não há vida em Cristo. Antes do Pentecostes os apóstolos são apenas testemunhas da ressurreição no sentido passivo do termo. A partir do Pentecostes eles comoverão o mundo com o testemunho fabulosamente dinâmico de que Deus concede, agora, vida ao mundo. A Igreja é empurrada ao mundo, descobrindo de maneira clara que é Verdade para o mundo, convencida de que o Espírito não foi concedido para seu deleite pessoal mas para capacitá-la a proclamar que Deus amou ao mundo de tal maneira que agora lhe possibilitou a vida em Cristo.13

Qual o motivo da introspecção da igreja de hoje? Seria porventura o resultado de uma teologia sistemática desassociada de missões? Na opinião do teólogo Hendrikus Berkhof, é possível. Diz ele: "Lamento, portanto, ter que dizer que o enriquecimento da teologia sistemática que deveria resultar em tomar a missão como um elemento essencial dos atos poderosos de Deus ainda está por vir".14 E mais: 
Uma conseqüência de tudo o que temos dito é que já não podemos conceber a missão como um mero instrumento da obra salvífica de Cristo, como o meio pelo qual os poderosos atos da encarnação, a expiação e a ressurreição são 
transmitidos às gerações que se seguem e às nações mais remotas. Tudo isto também é certo. Mas, como transmissão dos atos poderosos, a missão é, em si, um ato poderoso como são a expiação e a ressurreição. Todos estes outros atos jamais seriam conhecidos como atos poderosos de Deus se não fosse por este último: o movimento do Espírito missionário. Este último ato é a porta pela qual passam todos os precedentes. Este último ato ainda continua. Nós somos testemunhas de sua continuada realização.15


3.2.2. A perspectiva missionária do Pentecostes


O Pentecostes é o ponto alto do conjunto ou complexo daquela seqüência de eventos relacionados à morte, ressurreição e ascensão de Jesus. É por isso que para Lucas o Pentecostes possui um significado prático e dinâmico, traduzido em termos de nascimento e missão da igreja cristã.
Lucas apresenta o Pentecostes como o início da missão mundial da 
Igreja. A implementação do programa de Atos 1.8 dependia do Pentecostes. Aqueles que testificaram os efeitos do derramamento do Espírito Santo e ouviram o evangelho pregado por Pedro, representavam "todas as nações debaixo do céu" (At 2.5). E a lista, como já vimos, incluía um vasto panorama das nações do Mediterrâneo oriental (At 2.9-11).
O caráter missiológico de Atos 2 é facilmente percebido pela importância que Lucas dá ao Pentecostes. O Pentecostes está no começo de um novo livro escrito por ele e não no final de sua primeira obra. Não seria exagero dizer que pela posição do Pentecostes em Atos, Lucas atribui a ele um valor e importância semelhantes ao nascimento de Cristo no início de seu Evangelho, ou mesmo a algo como o relato da criação no início de Gênesis.
Concordamos com Simon Kistemaker quando diz: "Depois da obra da criação de Deus e a encarnação do Filho de Deus, a descida do Espírito Santo no Pentecostes é o terceiro maior ato divino".16
No decorrer deste estudo procuramos salientar que o propósito fundamental do Pentecostes de Atos 2 é a formação de uma igreja missionária.17 Igreja e missão significam duas partes inseparáveis na mente do Espírito. 
Mas o que dizer das línguas faladas no dia de Pentecostes? Nem é preciso especular se eram dos homens ou dos anjos. Lucas deixa claro que os "galileus"18 (no caso os apóstolos e outros que estavam na casa) de Atos 2.7 falavam as línguas das nações presentes naquela festa (At 2.6-11). Quanto à natureza e propósito das mesmas em Atos, Marshall comenta:
A história ensina que línguas humanas inteligíveis são significativas, não as línguas ininteligíveis como as freqüentemente encontradas na glossolália moderna ou como as que usualmente pensa-se ter sido faladas em Corinto. Acreditamos que dos diversos oradores cada um falou uma língua particular, embora fosse possível que cada um deles falasse diversas línguas diferentes em sucessão.19

A missão não é mera realização humana. Os dons do Espírito foram dados para o propósito da missão, e não para a edificação particular da igreja ou dos seus membros individuais.20


E qual o significado do vento e do fogo em Atos 2?


O vento simboliza o Espírito Santo. O som do vento denota poder celestial e seu aparecimento repentino revela a inauguração de algo sobrenatural.

O fogo era o cumprimento da descrição de João Batista do poder de Jesus: "Ele vos batizará com o Espírito Santo e com fogo" (Mt 3.11; Lc 3.16). No Antigo Testamento o fogo é freqüentemente um símbolo da presença de Deus para indicar santidade, juízo e graça (cf. Ex 3.2-5; 1 Rs 18.38; 2 Rs 2.11). Em Atos 2 o fogo se dividiu em línguas de fogo que pousaram sobre cada um dos crentes presentes na casa. Em decorrência disto eles falaram em outras línguas.
É provável que o conteúdo das línguas faladas por aquele grupo de irmãos consistia na profecia da graça e justiça de Deus.21
Vale ressaltar que Lucas tem o cuidado de observar que não foram simplesmente vento e fogo que invadiram a casa, mas sim o Espírito Santo como vento e fogo. Esta foi a maneira que Lucas encontrou para dizer que o que aconteceu naquele dia não tinha nada haver com fenômenos meramente naturais.


III. PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS DO PENTECOSTES


Há pelo menos três características do Pentecostes de Atos 2 que pretendemos destacar aqui.
1) O Pentecostes foi um ato soberano do Espírito
Lucas relata nos quatro primeiros versículos de Atos 2 como o Espírito Santo atuou soberanamente naquele dia, em fragrante contraste com a passividade dos que "estavam reunidos no mesmo lugar" (At 2.1). Depois diz que "de repente, veio do céu um som, e encheu toda casa onde estavam assentados" (At 2.2, grifo nosso). "E apareceram, distribuídas entre eles, línguas, como de fogo, e pousou uma sobre cada um deles" (At 2.3, grifo nosso). "Todos ficaram cheios do Espírito Santo e passaram a falar em outras línguas, segundo o Espírito lhes concedia que falassem" (At 2.4, grifo nosso).
Neste ato soberano do Espírito ficam evidentes a natureza sobrenatural do Pentecostes quando o Espírito Santo vem do céu e entra na casa com um som repentino como vento impetuoso e línguas de fogo que pousavam sobre cada um deles. Ficando todos cheios do Espírito passaram a falar em outras línguas, segundo o Espírito lhes concedia que falassem. O dom das línguas em Atos 2 nos faz relembrar o ensino de Paulo em 1 Coríntios 12.11: "Mas um só e o mesmo Espírito 
realiza todas estas cousas, distribuindo-as, como lhe apraz, a cada um,
individualmente".22


2) O Pentecostes foi um ato único do Espírito

A segunda coisa que aprendemos em Atos 2 é que o Pentecostes foi um ato único do Espírito Santo. Naturalmente este é um ponto controvertido, visto que as igrejas históricas o defendem mas as igrejas neo-pentecostais e carismáticas o rejeitam terminantemente. Buscando uma definição equilibrada a esse respeito 
capítulo (1 Co 12) para tecer um comentário importante do significado teológico do batismo com o Espírito em comparação ao Pentecostes de Atos. Diz ele: "O significado teológico do batismo com o Espírito não é explicado em parte alguma de Atos, e há apenas uma declaração, em todo o Novo Testamento, neste sentido. Embora isto seja encontrado em Paulo, as várias extensões do Pentecostes, relatadas em Atos, podem ser compreendidas à luz desta afirmação: 'Pois em um só Espírito fomos todos nós batizados em um só corpo, quer judeus, quer gregos, quer escravos, quer livres; e a todos nós foi dado beber de um só Espírito' (1 Co 12.13). O batismo com o Espírito é o ato do Espírito Santo reunindo, em uma unidade espiritual, pessoas de diferentes origens raciais e formação social, a fim de que formem o corpo de Cristo - a ekklêsia". acreditamos que o Dr. Pierson foi muito feliz em sua abordagem. Diz ele:
Alguns estudiosos falam de um "Pentecostes samaritano" e de um "Pentecostes gentílico" que sucedeu o Pentecostes de Jerusalém. Não podemos 
fazer o mesmo de modo nenhum, é claro. O primeiro Pentecostes, quando o Espírito foi derramado sobre os crentes, foi único. No entanto, existe um sentido segundo o qual estes termos estão corretos. O Espírito veio sobre a igreja de Jerusalém para prepará-la e capacitá-la para a sua missão. Mais tarde, pela vinda sobre os crentes de Samaria e então sobre os gentios, de modo tão claro e dramático, o Espírito aumentou a compreensão da igreja acerca da sua missão e preparou-a para os próximos passos. O Espírito do Cristo ressurreto continuava a liderar a sua igreja para fora dos limites de Jerusalém e da sua familiar cultura judaica em direção a outros povos, lugares e culturas - até aos confins da terra.23


3) O Pentecostes de Atos 2 foi universal

Um terceiro ponto que queremos destacar é o caráter universal do Pentecostes. Percebemos facilmente a intenção de Deus ao enviar o Espírito Santo numa ocasião em que "estavam habitando em Jerusalém judeus, homens piedosos, vindos de todas as nações debaixo do céu" (At 2.5). Entre os judeus "vindos de todas as nações" haviam também "prosélitos" (At 2.11). Mas isto não é tudo. O caráter universal do Pentecostes fica ainda mais evidente naquele trecho do discurso de Pedro que diz: "Pois para vós outros é a promessa, para vossos filhos e para todos os que ainda estão longe, isto é, para 
quantos o Senhor, nosso Deus, chamar" (At 2.39). 
Não sabemos até onde Pedro entendeu que a profecia de Joel prometia este dom ou batismo do Espírito a todos os crentes. Se tomarmos isoladamente o texto de Atos 10 poderemos concluir que foi somente após aquela experiência em Jope e na casa de Cornélio que Pedro e a igreja de Jerusalém entenderam que "também aos gentios foi por Deus concedido o arrependimento para a vida" (At 11.18).24 Contudo, recordemos que em seu discurso Pedro cita Joel, dizendo: "E acontecerá que todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo" (At 2.21). Não esqueçamos que os "prosélitos" de Atos 2.11 eram gentios.
A passagem citada há pouco de Atos 2.39 também parece lançar alguma luz sobre a concepção universal de Pedro.25 Uma referência aos gentios por Pedro é altamente provável, tendo em vista a maneira rabínica de entender a frase em Isaías 57.19 (cf. Ef 2.13,17). São promessas mediadas pela chamada divina - e com
estas palavras (de Atos 2.39), Pedro completa a citação de Joel 2.32 com a qual começara o seu discurso. "Ressalta-se a primazia da chamada divina e da graciosidade do Seu convite à toda humanidade".26

Na minha opinião Pedro estava certo de que o evangelho seria pregado a todos os povos, conforme a ordem de Jesus, "fazei discípulos de todas as nações" 
(Mt 28.19), mas que não seria através dele ou pelo menos não necessariamente através dele e dos judeus. "Os primitivos cristãos não compreenderam de imediato que era a sua missão proclamar o evangelho em todo o mundo. Eles permaneceram 
em Jerusalém, e a missão mundial não começou senão quando a perseguição expulsou os helenistas para fora da capital".27 De qualquer forma, Lucas, que era gentio, tinha em mente o evangelho para todos os povos quando escreveu Atos 2.
Gostaria de finalizar este pequeno estudo dizendo que o Pentecostes foi um ato único na história, mas com efeitos duradouros e permanentes. Não era o fim mas o início de uma nova era. A era do Espírito Santo. E aquele começo não poderia ser mais extraordinário como foi. Quer seja pela maneira como o Espírito se manifestou, quer seja pelo resultado daquela manifestação. Dos que ouviram a pregação do evangelho naquele dia, três mil foram salvos.

Na perspectiva missionária do Pentecostes, qual foi o propósito fundamental de Atos 2? O Pentecostes contempla a criação de um povo missionário formado por homens e mulheres que amam verdadeiramente a Jesus Cristo. O sacerdócio universal dos crentes começa no Pentecostes. E a partir daquele dia todos nós fazemos parte de uma mesma missão. A missão de proclamar as virtudes daquele que nos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz, a saber, Jesus, a esperança da glória.


1. Cf. John D. DAVIS, Festa In Dicionário da Bíblia, p. 225
2. Cf. D. FREEMAN, Festa de Pentecostes In O novo dicionário da Bíblia, Vol. II, p. 1265.

3. Veja, por exemplo, Isaías 32.15; 44.3; Ezequiel 39.29.

4. Cf. Thomas J. FINLEY, The Wycliffe Exegetical Commentary: Joel, Amos, Obadiah, p. 77

5. Cf. I. Howard MARSHALL, op. cit., p. 73 (nota 16).

6. "É possível que Lucas tenha visto uma referência a gentios bem como a judeus" (Idem, nota 17).

7. Cf. MARSHALL, op. cit., p. 73,74.V. t. KISTEMAKER, op. cit., p. 90. Para uma interpretação diferente, consulte Thomas J. FINLEY, op. cit., p. 76-81.

8. Cf. William HENDRIKSEN, New Testament Commentary: Exposition of the gospel according to Luke, p. 210-211.

9. Para um contraste interessante entre o festival judaico do pentecostes e a expectativa dos discípulos pelo batismo do Espírito, veja I. H. MARSHALL, The Significance of Pentecost In Scottish Journal of Theology, p. 352-359.

10. Paul E. PIERSON, Atos que contam, p. 27.

11. Cf. Simon J. KISTEMAKER, op. cit., p. 82.
12. I. Howard MARSHALL, op. cit., p. 71
13. Ely Eser B. CÉSAR, A ação humanizadora do Espírito, p. 58. V. t. PIERSON, op. cit., p. 19,179,180.

14. Hendrikus BERKHOF, La doctrina del Espíritu Santo, p. 36.

15. Idem, p. 38.

16. KISTEMAKER, op. cit., p. 91.

17. Um estudo excelente sobre a missiologia do Pentecostes pode ser encontrado em Harry R. Boer, Pentecost and missions, p. 48-254 e também no livro de Roland Allen, Pentecost and the World.

18. Para um estudo interessante do termo "galileus" de Atos 2.7, consulte C. S. Mann, Pentecost in Acts In Anchor Bible: The Acts of the Apostles, p. 271-275.

19. MARSHALL, op. cit., p. 357. V. t. KISTEMAKER, op. cit., p. 77,78 e J. D. G. DUNN, op. cit., p. 523. Para uma comparação das línguas como sinal de bênção e maldição entre o Antigo e Novo Testamentos, veja o livreto de O. Palmer ROBERTSON, Línguas: Sinal de bênção e maldição. E para um contraste interessante entre a glossolalia de Atos 2 e Gênesis 11, consulte R. B. KUIPER, Evangelização teocêntrica, p. 60,61.

20. MARSHALL, op. cit., p. 50. V. t. PIERSON, op. cit., p. 19, 43, 78-83, 179,180.

21. Cf. José João de Paula, O Pentecostes, p. 118-122. 22. G. E. LADD (op. cit., p. 327) utiliza este mesmo
23. Paul E. PIERSON, op. cit., p. 111,112. V. t. John R. W. STOTT, Batismo e plenitude do Espírito Santo, p. 15-55; Frederick D. BRUNER, Teologia do Espírito Santo, p. 122-166; George E. LADD, Teologia do Novo Testamento, p. 326.

24. É interessante notar que em sua justificativa perante a igreja de Jerusalém em Atos 11 Pedro menciona o evento do Pentecostes para convencer seus ouvintes. 

Veja Atos 11.15-18.

25. Cf. John STOTT, op. cit., p. 20,21; R. B. KUIPER, op. cit., p. 59-61.
26. Cf. MARSHALL, op. cit., p. 82.
27. Cf. G. E. LADD, op. cit., p. 327.

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