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domingo, 17 de janeiro de 2010

VIVENDO E APRENDENDO COM C.S.LEWIS - I

Parte XIII a
VIVENDO E APRENDENDO COM C.S.LEWIS


O sentido medieval é, novamente, o mais fácil de ser reconhecido:

É fácil reconhecer em que sentido os sorrisos de Dante eram “metafísicos.” A relação entre estes dois elementos é real, ontológica, inteligível e o material não precisa ser, em si mesmo, belo; pode até vir a ser grotesco – como, por exemplo, quando o tempo é representado por uma árvore que cresce para baixo em um vaso que representa o Primum Mobile (Paradiso, XXVII, 118).15



Em sua detalhada análise das imagens usadas por Dante nesta obra, não é complicado reconhecer o predomínio dos frutos do jardim (garden) em relação às paisagens (landscape):

Talvez esta seja uma característica da Idade Média antes de ser de Dante. Os poetas medievais interessam-se por árvores, flores, feras, pássaros e rios e não muito freqüentemente, penso eu, por paisagens. E quando alguns se mostram interessados, são geralmente de origem alemã.16

E, de fato, as imagens usadas na Divina Comédia, por exemplo, são de grande concretude, luminosidade, movimento ou peso, o que sugere um estilo medieval extremamente concreto e metafórico, ao invés do romântico, intrínseco a autores renascentistas.17

Para Lewis, os símbolos são referenciais indicadores de uma realidade muito mais concreta e maravilhosa do que eles podem ser — signos não valem nada por si mesmos (o que não tira sua importância e utilidade). Por isso é que ele “joga” tanto com as imagens nas Crônicas de Nárnia, fazendo uma verdadeira “miscelânea” de personagens mitológicos, lendários, realistas, etc.

Ao contrário dos que simplesmente descartam toda imaginação, exaltando uma espécie de literatura dos “fatos,” insossa e enfadonha, Lewis pretende mostrar quão ridículo é o tipo de inversão da realidade e, conseqüentemente, dos valores que o homem cultiva, exaltando os meios em lugar dos fins (que são, na verdade, a real fonte de inspiração dos símbolos).

Como ele comenta no prefácio (infelizmente não incluído na edição brasileira) das Cartas do Diabo ao seu Aprendiz, a tática do diabo é precisamente provocar-nos com suas acrobacias, ou a temê-lo ou a desprezá-lo, para desviar-nos do Ser onipotente: Há dois erros acerca dos demônios, nos quais nossa espécie pode cair. Um é não acreditar em sua existência. O outro é acreditar e nutrir um interesse excessivo e doentio por eles. Os próprios diabos ficam igualmente satisfeitos com ambos os erros e saúdam o materialista ou o mágico, com o mesmo deleite.18

A leitura da primeira carta desse fascinante livro já basta para compreendermos a diabólica jogada da inversão dos valores (que nos deixa estarrecidos diante de atrocidades cometidas por crianças e adolescentes, nas escolas de hoje): convencer o “paciente” de que as coisas boas não são, na verdade, tão boas assim e as ruins não são totalmente ruins ou já foram ruins um dia, mas hoje é diferente... Dessa forma, instauram-se dualismos que procuram substituir ou confundir coisas boas e ruins. O relativo passa a ser posto como absoluto (recaindo num falso “moralismo”), enquanto que o absoluto é relativizado. Veja como o diabo velho Screwtape19 em pessoa, das Cartas do Diabo a seu Aprendiz, procura explicar ao seu “ingênuo” aprendiz essa manobra:

Parece que supões que a argumentação é a maneira de mantê-lo longe das garras do Inimigo. Isto poderia ser assim se ele vivesse há alguns séculos. Nesta época, os humanos ainda sabiam muito bem quando uma coisa era comprovada e quando não era; e se era comprovada, acreditavam nela. Eles ainda relacionavam o pensar com o fazer, e estavam preparados para alterar seu modo de vida como resultado de uma sucessão de pensamentos. Mas, com a imprensa semanal e outras armas do gênero, conseguimos alterar isto em grande medida. Teu homem foi acostumado, desde garoto, a ter uma dezena de filosofias incompatíveis dançando em sua cabeça. Ele não pensa em doutrinas como prioritariamente “verdadeiras” ou “falsas,” mas como “acadêmicas” ou “práticas”, “superadas” ou “contemporâneas”, “convencionais” ou “desumanas.” Jargão, não argumento, é o teu melhor aliado em mantê-lo longe da Igreja.20

Stott nos mostra como esta tática diabólica de evitar toda argumentação lógica se traduz em algumas igrejas:

O espírito do anti-intelectualismo é corrente hoje em dia. No mundo moderno multiplicam-se os pragmatistas, para os quais a primeira pergunta acerca de qualquer idéia não é: “É verdade?,” mas sim: “Será que funciona?” Os jovens têm a tendência de ser ativistas, dedicados na defesa de uma causa, todavia nem sempre verificam com cuidado se sua causa é um fim digno de sua dedicação, ou se o modo como procedem é o melhor meio para alcançá-lo... Este mesmo espectro de anti-intelectualismo surge freqüentemente para perturbar a Igreja Cristã. Considera a teologia com desprazer e desconfiança.21

A prática anti-intelectualista de muitas igrejas de hoje receberia certamente, assim, muitos elogios da parte do monstruosamente “racionalista,” mas ao mesmo tempo irracional, personagem de Lewis. Apesar dos medos e receios que isso possa levantar, é fundamental e urgente resgatarmos as práticas do debate saudável e livre de idéias e a argumentação dentro de algumas comunidades cristãs, pois é isso precisamente que o diabo mais teme, já que sabe muito bem que não tem razão alguma. As coisas estão completa e radicalmente separadas de Deus, desde a queda, mas não há nada na criação que seja essencialmente mau, pelo simples fato de o mal não possuir a essência ou a lógica (ratio) interna das coisas criadas por Deus, que foram cuidadosamente pensadas e projetadas por ele através do Logos (Cristo). A natureza do mal é outra. Por isso é que o castor de O Leão, a Feiticeira e o Guarda Roupa insiste em explicar às crianças que a natureza da feiticeira não é humana, apesar das aparências que mantém. Graças a Deus, o mal é impotente para destruir o reflexo do Criador nas coisas. Por isso é que Deus, de certa forma, é ainda mais “assustador” do que o diabo.

A partir da visão equilibrada de Lewis e autores correlatos, é preciso considerar que o extremo oposto do racionalismo, o anti-intelectualismo (monstruosidade não menos nefasta do que o racionalismo), tem tido livre acesso às salas-de-aula de certas comunidades, como tem sido constatado por alguns educadores cristãos e equipes sérias, preocupadas e empenhadas em garantir o nível de ensino das escolas dominicais na atualidade e para o futuro.22 Pois, quando ocorre de simplesmente ignorarmos a necessidade humana de compreender as coisas através da razão, considerando “suspeito” todo e qualquer questionamento ou argumentação nos encontros dominicais, recaímos no maniqueísmo, correndo um sério risco de nos tornarmos “presas fáceis” de qualquer “vento de doutrina.” A melhor maneira de evitarmos esse tipo de perigo é aprender a empregar a mente da forma correta, nem que, para isso, tenhamos que quebrar certos paradigmas há muito assentados.

É precisamente no sentido de manter ilesos os paradigmas estéreis, aparentemente “bem comportados,” que evitam a renovação ou reforma das idéias anacrônicas nos meios cristãos, que o diabo velho Screwtape procura instruir o seu aprendiz a sempre manter seu paciente humano longe de debates mais sérios. E explica por que:

O problema com a argumentação é que ela leva toda a batalha para o campo do Inimigo. Ele também pode argumentar; enquanto que no campo da propaganda realmente prática, do tipo que estou sugerindo, ele tem se mostrado há séculos muito inferior a Nosso Pai Cá Embaixo. Pelo próprio fato de argumentar, tu despertas a razão do paciente; e uma vez desperta, quem pode prever o resultado? Mesmo se uma determinada série de pensamentos possa ser desvirtuada para terminar nos favorecendo, tu perceberás que tens reforçado no teu paciente o hábito fatal de prestar atenção a questões universais e afastado sua atenção do fluxo das experiências imediatas dos sentidos. Tua obrigação é fixar sua atenção no fluxo.23

Uma das estratégia prediletas do diabo é, assim, desviar a atenção do paciente das coisas essenciais e evitar que ele procure compreendê-las; não deixá-lo refletir sobre as coisas como realmente são, fazendo-o prestar atenção somente nas manifestações externas ou na forma como ele mesmo as percebe subjetivamente. A percepção da realidade objetiva ou concreta das coisas é, em suma, o grande “perigo” do qual o diabo foge a todo custo (pois é precisamente esta experiência concreta, totalmente humana e existencial que Deus e os homens têm em comum, e que pode, de repente, aproximá-los):

Ensine-o a chamar-lhe “vida real” e não o deixe perguntar o que se quer dizer com “real”... Tu não percebes o quanto são presos pela pressão da experiência comum... Uma vez tive um paciente, um bom ateísta, que costumava ler no Museu Britânico. Um dia, enquanto lia, vi um encadeamento de pensamentos em sua mente começando a ir no caminho errado. O Inimigo, é claro, estava no seu calcanhar num instante. Antes de perceber o que sucedia, vi meus vinte anos de trabalho começarem a ruir. Se tivesse perdido o sangue-frio e começado uma defesa por meio de argumentação, estaria perdido. Mas não fui idiota. Ataquei imediatamente na parte do homem que estava sob meu maior controle e sugeri que já era tempo de comer algo. O Inimigo presumivelmente fez a contra-sugestão (tu sabes que nunca se consegue escutar tudo o que ele diz a eles?) de que isto era mais importante do que um lanche. Pelo menos acho que foi isto que ele sugeriu, pois quando eu disse: “Bem, na verdade algo demasiadamente importante para tratar no final de uma manhã,” o paciente animou-se consideravelmente; e quando acrescentei: “muito melhor voltar depois do lanche e abordar o tema com a mente descansada,” ele já estava a meio caminho da porta. Assim que chegou à rua, a batalha estava ganha. Mostrei-lhe um garoto gritando as manchetes do jornal do dia... e, antes que ele chegasse ao fim dos degraus, eu lhe havia fixado numa convicção inalterável de que, sejam quais forem as idéias esquisitas que possam vir à mente de uma pessoa quando está sozinha com seus livros, uma saudável dose de “vida real” (...) é o bastante para mostrar que todo “aquele tipo de coisa” simplesmente não poderia ser verdade... Hoje ele está salvo na casa de Nosso Pai.24

Essa mesma lógica do desvio e do engano, da substituição do real por algo aparentemente mais importante, é empregada no último trecho da carta, que é quase um tributo a Whitehead, inventor do sábio provérbio: às vezes não se enxerga o bosque, de tantas árvores:

Graças a passos que pusemos em funcionamento há séculos, eles acham quase impossível acreditar no não-familiar, enquanto que o familiar está diante dos olhos. Insista sobre o caráter comum das coisas com ele. Acima de tudo, não tente usar a ciência (quero dizer, as autênticas ciências) como uma defesa contra o cristianismo. Elas certamente o encorajarão a pensar acerca de realidades que ele não pode tocar nem ver. Tem havido casos tristes entre os físicos modernos. Se tiver de dedicar-se superficialmente à ciência, mantenha-o ocupado com economia e sociologia; não o deixe afastar-se daquela inestimável “vida real.” Mas o melhor de tudo é não deixá-lo ler sobre ciências, mas sim dar-lhe uma idéia geral de que conhece tudo, e que tudo que captou em conversas e leituras casuais é “resultado da moderna investigação.” Lembra que tu estás aí para confundi-lo. Pela maneira que alguns de teus jovens demônios falam, suporíamos que nosso trabalho é ensinar! Teu afetuoso tio...25

C. Apre(e)nder contemplativo
Para os clássicos da literatura, “ver a vida como ela é” não significa olhá-la com ceticismo, como para algum corpo morto, mas olhá-la com admiração (que é um dos sentidos da paixão), ou seja, contemplar o reflexo do Criador, dirigindo o olhar (mirar no espanhol) do leitor para o que vai “além” dos fatos nus e crus.

Apesar de defensor da “lógica das coisas” e da argumentação, é preciso deixar claro que Lewis não é um racionalista que rejeita qualquer tipo de contemplação ou conhecimento pela fé. Pelo contrário, todo o seu esforço concentrou-se em mostrar aos racionalistas a importância da abertura para a totalidade do real, que muitas vezes não é tão “lógica” quanto gostaríamos, exigindo mais fé do que notamos ou admitimos, como comentam Odero & Odero, parafraseando Chesterton:

Segundo Chesterton, a fonte de erros mais freqüente do mundo está no fato de que as coisas são “quase razoáveis,” sem chegar a sê-lo completamente. A vida não é ilógica em si, mas assim acaba parecendo ser para os lógicos, porque aparenta ter mais regularidade matemática do que, de fato, possui. Daí a importância de contrastar o pensamento com a realidade para buscar a verdade. Como podemos ver, este é um tema que freqüentemente aparece nas obras de Lewis. Em seu livro Ortodoxia, Chesterton trata de forma genial desse mesmo e tão importante assunto: O homem de hoje sempre se tem preocupado mais com a verdade do que com a coerência.26

A falta de consistência e coerência entre o que se professa e o que se vive é apontada por Lewis como um dos grandes obstáculos à criação literária da atualidade. O consumismo, o individualismo egocêntrico e a falta de consideração, tanto das limitações da natureza humana quanto do seu lado positivo, são obstáculos que precisam ser combatidos pelo crítico literário:

A maior arte do crítico é a de sair de si mesmo e deixar que a humanidade decida. Nosso dever é mostrar aos outros a obra que eles alegam admirar ou desprezar, como realmente é, descrevendo, quase que definindo seu caráter, para depois deixar que eles mesmos julguem (agora muito melhor informados). A certa altura, o crítico é até avisado para não adotar um rígido perfeccionismo. Ele deve manter sua idéia de excelência, de perfeição, mas, ao mesmo tempo, estar disposto e acessível ao segundo melhor que se oferece. Ele deve, em uma palavra, ter o caráter que [George] MacDonald atribuía a Deus, e Chesterton, seguindo-o, ao crítico; aquele que é “fácil de agradar, mas difícil de satisfazer.”27

D. Apre(e)nder imaginativo
Como dizíamos, parafraseando Chesterton, o melhor método para se apreender a realidade das coisas, que tão freqüentemente nos escapa numa abordagem direta, é o contraste (por exemplo, não podemos dizer o que é e no que implica a luz ou a energia, mas podemos constatar e determinar o que é o conceito e implicação da sua falta). Para o que não podemos captar pela razão, resta-nos a aceitação pela fé, ou a procura por uma via alternativa de aproximação, a via da imaginação. Na literatura não há melhor método de contraste do que os contos-de-fada, que consideram as coisas não diretamente como elas são ou se explicam, mas indiretamente, como elas não são, ou como foram vocacionadas a ser. Os contos-de-fada, longe de representar uma infantilização ou banalização da realidade, revelam-se como um poderoso recurso didático, capaz de ensinar verdades “éticas” muito mais adultas do que podemos supor. Por isso é que todo bom crítico e educador amadurecido sabe apreciá-los:

Nós que ainda apreciamos os contos-de-fada temos menos razões para querermos voltar às atitudes infantis. Conservamos o bom da infância, sem abrir mão de certos prazeres adultos.28

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