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quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

A CRISTOLOGIA CLÁSSICA E A CRÍTICA SUBSEQÜENTE

Se tem uma questão onde a crítica gosta de “remexer”, é a da identificação de Jesus com Deus. Como é possível, passar do reino de Deus, o dado central da mensagem de Jesus, para o dogma da Trindade, que identifica a pessoa de Jesus Cristo com Deus? 

A igreja primitiva cria que a vinda do reino de Deus ocorreu na crucificação e ressurreição de Jesus de Nazaré. Sem a ressurreição não poderia ter surgido fé na divindade de Jesus. Desta maneira, a fé não gerou a ressurreição, como disse Bultmann, mas a ressurreição sim, gerou a fé.


A vinda de Deus e a vinda de Jesus estão, assim, unificadas na experiência da salvação escatológica. A lógica da salvação exigia a identificação de Jesus com Deus. A experiência da cruz e ressurreição de Jesus como o evento definitivo da salvação gerou a fé, centrada na pessoa de Jesus Cristo, que tradicionalmente pertencia só a Deus, caso se quisesse evitar a idolatria. Se a salvação realmente tinha chegado através da pessoa de Jesus, ele também deve ter sido Deus, porque Deus, e tão somente ele, é o poder da salvação.

Se, para Jesus, o reino estava próximo, para a igreja ele já estava aqui – em Cristo. E os participantes do reino de Deus em Cristo, tornam-se cristãos, experimentando já sinais que pressagiam o estabelecimento absoluto deste reino.

Na cruz de Cristo, Deus lidou vitoriosamente com o pecado do mundo. Em sua ressurreição, foi derrotada a morte e criada nova vida que permanece. Por assim dizer, então, ser participante do reino de Deus, significa ser vitorioso contra o pecado e a morte.

Com isto, ou seja, com tudo o que já foi dito, podemos crer que a identificação de Jesus com Deus não foi, a princípio, resultado de um desenvolvimento dogmático. Mas foi, antes de tudo, uma certeza crescente, que se desenvolvia a cada revelação de Deus na pessoa de seu Filho Jesus Cristo.

A confissão de que “Jesus é Senhor” (Rm. 10:9; I Co. 12:3; Fp. 2:11) não foi produto de uma posterior helenização do cristianismo. Essa fórmula apareceu já no culto da comunidade palestina, colocando Jesus no mesmo nível de Deus. Kyrios era a tradução grega do termo adonai, o nome predileto para designar Deus entre os judeus. Sua aplicação a Jesus no contexto do culto não podia ser mal-entendida por pessoas familiarizadas com as regras da reverência devida ao nome de Deus num ambiente hebraico.

Com base na fé em Jesus e no culto a ele prestado, a igreja primitiva não só reconheceu Jesus como Senhor, mas também transferiu a ele todos os altos títulos e atributos divinos. E isto foi como a primeira igreja viu a identificação de Jesus com Deus.
Porém, como era de se esperar, surgiram algumas heresias cristológicas, as quais, algumas foram comentadas no livro Dogmática Cristã. A identificação de Jesus com Deus não aconteceu sem grave perigo para a fé cristã. O perigo existente na acentuação da divindade de Cristo era o de que a fé poderia perder de vista a humanidade real do homem Jesus. Essa visão unilateral produziu a heresia conhecida como docetismo, a perene heresia da “ala direita” da cristologia. Esta heresia é um ensino cristológico, difundido sobretudo em círculos gnósticos, que dizia que Jesus Cristo só parecia ter um corpo humano e só pareceu sofrer e morrer. “Docetismo” vem do termo grego dokein, que significa “parecer”. Marcião, o herege do século II, foi o teólogo mais proeminente a popularizar uma cristologia docética. A influência gnóstica considerava a matéria como má e a carne como irreal. Por isso, quando Deus se fez homem e o Verbo se fez carne na pessoa de Jesus Cristo, isso só aconteceu aparentemente, segundo os gnósticos. Nesta concepção, contudo, o Filho de Deus não podia tornar-se realmente humano.
No polo oposto estava o ebionitismo, a perene heresia da “ala esquerda” da cristologia. É um ensinamento cristológico muito difundido no século II, que apresenta Jesus como mero homem, negando completamente sua divindade. Este termo provém do vocábulo hebraico ebionim, que significa “pobres”. Os ebionitas eram originários principalmente de círculos judeus. Para os ebionitas, Jesus era certamente o Messias, o Cristo, mas era só um homem. Ele não podia ser Deus. Eles também negavam o nascimento virginal de Jesus.

Esses extremos constituíam os dois lados da mesma moeda cristológica: rejeição de uma encarnação real de Deus no homem Jesus.

Os docetas estavam presos a um conceito helenístico de Deus como um absoluto atemporal que não podia realmente mudar. Porque Deus é Deus, ele é imutável. Assim, não podia haver uma encarnação real, nenhuma mudança real em sentido ontológico, mas somente na aparência. O Deus da metafísica grega determinava completamente a cristologia docética.

Os ebionitas estavam comprometidos com um conceito judaico de Deus como totalmente outro em termos de transcendência e santidade. Deus é Deus e a humanidade é a humanidade; o infinito não é capaz de entrar no finito. A separação ontológica torna uma encarnação real de Deus impensável, até blasfêmia.

A linha docética à direita pode ser reconhecida no monarquianismo modalista, uma doutrina do século III proposta por Sabélio, bispo de Roma. Ele ensinou que o Deus uno (a monarquia divina) apareceu como o Pai no A.T., como o Filho na vida de Jesus e, finalmente, como o Espírito na igreja. Diante deste assunto, é importante também frisar como o autor de livro DC, que costuma-se distinguir entre a “Trindade econômica” e a “Trindade imanente”. A Trindade imanente significa que os nomes do Pai, do Filho e do Espírito Santo se referem a distinções reais dentro de Deus. Em consequência, também falamos da Trindade essencial ou ontológica. A Trindade econômica significa que as distinções surgem das três maneiras em que o Deus uno se manifestou na história da revelação (a economia divina). Desde que Friedrich Schleiermacher reabriu o debate sobre Sabélio, eruditos têm questionado se Sabélio realmente ensinou que Pai, Filho e Espírito Santo referem-se meramente a manifestações temporárias e sucessivas de Deus em relação ao mundo. Mas, o que importa lembrar é que, esse novo tipo de docetismo também tornava impossível uma encarnação real.

Também no século III houve uma continuação da linha ebionita à esquerda: o monarquianismo dinamista, representado por Paulo de Samósata, bispo de Antioquia. Adocianismo é a designação mais comum para esse tipo de cristologia. Cristo era realmente divino; estava repleto do dinamismo do Espírito e, de modo único, foi adotado pelo Pai como seu único Filho amado. Isso não era uma aparição de Deus a partir de cima, como no monarquianismo modalista. Pelo contrário: no modelo adocianista, Jesus Cristo se tornou divino a partir de baixo, pela inabitação do Espírito e por seu crescimento em santidade própria de Deus. A explicação aqui é que o humano ascendeu, através de desenvolvimento espiritual e moral, ao nível da semelhança com Deus.

Na época em que Constantino se tornou pontifex maximus (321 d.C.), o cristianismo foi ameaçado por um sério ataque da esquerda. O ataque foi dirigido por Ário, que estava influenciado pelos teólogos adocianistas Luciano de Antioquia e Paulo de Samósata. O arianismo, entretanto, era uma negação da divindade de Cristo mais complexa do que aquela que encontramos no ebionismo ou no adocianismo. Para Ário, Cristo era mais do que um ser humano e mais do que o Filho adotivo de Deus. Ele era o Logos, o Filho de Deus, que existia antes que Deus Pai criou o mundo. Porém, ele não era Deus, não compartilhava da essência divina. O Logos não era eterno. No início havia unicamente Deus, o Logos foi criado para assistir Deus na criação do mundo. O Logos podia mudar, entrar na história, unir-se com carne humana na pessoa de Jesus, até sofrer e morrer. Assim, a encarnação do Logos foi inferior a uma encarnação real da verdadeira essência de Deus.

Atanásio, o impetuoso oponente de Ário, sustentava que o arianismo era heresia porque questionava toda a realidade da salvação. Se o Logos, como redentor, é ontologicamente inferior a Deus, como uma criatura o é em relação ao Criador, não pode haver salvação real, pois tal sistema coloca o ônus da salvação sobre uma criatura. Atanásio perguntava como um ser inferior a Deus poderia elevar os seres humanos até o nível de Deus. Como poderia o mediador entre Deus e a humanidade ser menos do que plenamente divino e plenamente humano?
No Concílio de Nicéia, em 325 d.C., os pais inseriram uma antiga palavra de origem gnóstica, homoousios (do grego homos, “igual, idêntico”, e ousia, “ser”), para expor a deficiência da cristologia de Ário. O Credo Niceno tornou-se a afirmação fundamental da igreja na interpretação da encarnação.

A partir de sua conexão trinitária, a cristologia passou a estabelecer a relação existente entre o Cristo divino e o Jesus humano. O apolinarismo, que recebeu seu nome de Apolinário, bispo de Laodicéia, começou afirmando a cristologia alta do Credo Niceno. Ele era completamente ortodoxo na doutrina da Trindade. Ele sustentava que o Filho é distintamente outro do que o Pai (contra o sabelianismo), porém compartilha eternamente da substância una do Pai (contra o arianismo). Todavia, ter uma posição correta a respeito da Trindade pelo critério da ortodoxia não determinava como um teólogo poderia interpretar a encarnação. Apolinário moveu-se na direção do docetismo ao ensinar que a humanidade assumida por Cristo na encarnação era incompleta. Por certo o Logos em Cristo era verdadeiramente Deus; entretanto, na encarnação ele não se tornou inteiramente humano. Apolinário cria que uma união genuína só é possível quando o Logos, como princípio ativo de autoconsciência e autodeterminação, substitui o espírito humano. A união que havia em Cristo era uma união do Logos perfeito com uma natureza humana incompleta.

O Concílio de Constantinopla, em 381 d.C., afirmou o caráter completo da natureza humana de Cristo. Estava em funcionamento a mesma lógica que exigia o homoousios com o Pai, requerendo um homoousios comparável com a humanidade. Era a lógica da salvação. O princípio operativo era este: o que não foi assumido não pode ser salvo. O primeiro concílio eclesiástico a se decidir contra o apolinarismo declarou: “Se, pois, o homem todo estava perdido, era necessário que aquilo que estava perdido fosse salvo.” (Concílio de Roma, 374-376 d.C.).

Para Nestório, um dos líderes da escola de Antioquia, Jesus Cristo era tanto plenamente Deus quanto plenamente homem, mas as naturezas divina e humana devem manter-se distintas e não reduzidas na encarnação. Deve haver dois de tudo – duas naturezas, duas substâncias, duas vontades, duas séries de atributos – e, por consequência, também duas pessoas (prosopa).

Essa doutrina de duas pessoas juntadas em Cristo tornou-se a marca definidora do nestorianismo como heresia. O problema essencial do nestorianismo é simples: ele não podia afirmar uma encarnação real. Os nestorianos propunham uma união de duas pessoas vivendo lado a lado numa comunhão de amor e liberdade moral. Os alexandrinos insistiam numa unidade ontológica mais profunda de Deus com o homem Jesus. Para Eutíquio, patriarca de Constantinopla, e Dióscoro, bispo de Alexandria, a coisa mais significativa em Cristo era sua natureza divina, não sua humanidade. Para esta doutrina, a partir do momento da encarnação, restava apenas uma natureza. Por conseguinte, essa heresia é apropriadamente chamada de monofisismo, que significa “uma natureza”, e, por vezes também de eutiquianismo, segundo o nome de um de seus proponentes. Os monofisitas sacrificavam a integridade da humanidade de Jesus em benefício de sua divindade.

No século V a igreja se debateu no dilema de optar entre um Cristo divino que não era realmente humano (monofisismo) e um Jesus humano que não era realmente uno com Deus (nestorianismo). A confissão ortodoxa que emergia seria, daí em diante, que Jesus Cristo era plenamente Deus e plenamente humano. Como, porém, estão os dois relacionados permaneceu, para eles, como um mistério. Por fim, em Calcedônia (451 d.C.), os pais do concílio formularam o dogma cristológico das duas naturezas. Assim, a igreja optou por um meio termo entre as alternativas de Nestório e de Eutíquio.
O veredito final pronunciado pelo credo de Calcedônia reza (fragmentado): “(...) Um só e o mesmo Cristo, Filho, Senhor, Unigênito, tornado conhecido em duas naturezas (que existem) sem confusão, sem mutação, sem divisão, sem separação; não sendo a diferença das naturezas de modo algum removida em razão da união, mas, antes, sendo as propriedades de cada uma preservadas, e concorrendo (ambas) em uma só Pessoa (prosopon) e uma só hypostasis – não partida ou dividida em duas pessoas (prosopa), mas um só e mesmo Filho e Unigênito, o Logos divino, o Senhor Jesus Cristo... (...)”

Esta é a famosa definição calcedonense da identidade pessoal de Jesus Cristo. O propósito principal do credo era afirmar uma encarnação verdadeira, não explicar seu mistério. As duas naturezas, embora permanecendo distintas, foram unidas na pessoa una de Cristo. No entanto, o credo não explicou como duas naturezas completas puderam ser unidas numa só pessoa. Pode-se concluir com segurança que o concílio conseguiu cumprir, por certo tempo, uma cerca protetora em torno do mistério da pessoa de Jesus Cristo. Ele, o credo, certamente deixou espaço para ulterior desenvolvimento.

Agora somos levados do credo de Calcedônia à Formula de Concórdia. Consideremos o ataque contundente de Paul Althaus: “Não se pode separar a natureza da pessoa. A personalidade humana é um constituinte essencial da natureza humana. Por consequência, a ‘anhypostasia’ abole a verdadeira humanidade de Jesus, seu ego humano que cria e orava, a verdade do fato de ele ser tentado.

O que a anhypostasia nega é que a natureza humana de Jesus existia ou existe por si mesma fora da Palavra, e a enhypostasia afirma que Jesus tinha existência pessoal, porém unicamente em e através da Palavra. A humanidade não é abolida ou mutilada, mas sim elevada e realizada em união com a pessoa, a hypostasis, da Palavra de Deus.

No Ocidente praticamente não houve qualquer desenvolvimento digno de nota ao longo da Idade Média, com exceção de um ressurgimento do adocianismo na Espanha do século VIII. Nesta concepção, Jesus, em sua humanidade, era o Filho adotivo pela graça de Deus (adoptivus homo). Esse ensinamento foi condenado em vários sínodos como reavivamento da impiedade nestoriana que dividia Cristo em dois filhos, o Filho de Deus eterno e o Filho do homem adotivo.

O problema cristológico foi levantado mais uma vez nas acaloradas controvérsias entre luteranos e calvinistas sobre a doutrina da comunicação de atributos (communicatio idiomatum). Lutero ensinava que, na Ceia do Senhor, o Cristo todo estava realmente presente, inclusive sua natureza humana, e, por conseguinte, também seu corpo e sangue. Zwínglio respondeu com sua teoria da alloeosis, que explica o discurso da fé acerca da presença real como uma figura de linguagem. Zwínglio disse que o Cristo humano não pode estar realmente presente na Ceia do Senhor, visto que é finito. Já Lutero ensinou a ubiqüidade ou onipresença, que é, essencialmente, um atributo da natureza divina, mas que é comunicada à natureza humana por causa da união encarnacional.

Depois de algum tempo, sistematizou-se a doutrina da permuta dos atributos em três gêneros, que, criam os pais luteranos, tinham o apoio da Escritura. Em primeiro lugar, há o gênero “idiomático”: qualidade de qualquer das naturezas podem ser atribuídas à pessoa toda. Em segundo lugar, há o gênero “apotelesmático”: ações da pessoa una podem ser atribuídas a uma ou outra das duas naturezas. Em terceiro lugar, há o gênero “majestático”: qualidades divinas, tais como onipotência e onipresença, são atribuídas à natureza humana. Os luteranos desejavam acentuar a unidade da pessoa divino-humana, correndo o risco monofisita de misturar as naturezas. Sua formula de combate era “finitum est capax infiniti”, o finito é capaz do infinito. Já os reformados diziam que não. Eles mantiveram uma clara distinção entre as duas naturezas, de modo que seu slogan veio a ser “finitum non capax infiniti”, o finito não é capaz do infinito.
Se o Logos é divino, então ele não podia se limitar à carne de Jesus.

Consequentemente, os calvinistas ensinavam que o Logos, sendo infinito, deve existir extra carnem (fora da carne) e não estar limitado por sua união com a carne. Os luteranos reagiam com uma teologia da cruz, sustentando que o Logos só pode ser conhecido na carne. Assim, cunharam a expressão “totus intra carnem” e “nunquam extra carnem” (totalmente na carne e nunca fora da carne)

O artigo VIII da Fórmula de Concórdia (1580) visava reconciliar diferenças entre a escola de Johannes Brenz (da Suábia) e a escola de Martin Chemnitz (da Baixa Saxônia). Esta fórmula tentou encontrar uma linguagem equilibrada para resolver as disputas, mas teve pouco êxito.

Só no século XIX houve um ponto de partida, por alguns luteranos, que foi mais satisfatório, usando a idéia de kenosis, sugerida por Filipenses 2:6s. do mesmo modo que os atributos divinos passaram à natureza humana, os humanos passaram à divina! Desta forma, o divino preenchia o humano em muitos aspectos, inclusive no auxílio para que Jesus não pecasse, e o lado humano preenchia o divino, inclusive no auxílio à humilhação e morte.

Schleiermacher, porém, era um dos que fizeram uma crítica à dogmática. Ele via a necessidade de usar-se uma linguagem mais filosófica nestas explicações, pois o homem moderno não consegue entender esta cristologia antiga, como disse ele. Adolf von Harnack tinha também pensamentos parecidos quanto ao valor dos dogmas. Tudo isto, devido ao fato de que, segundo eles, a igreja criou seus dogmas como produtos da “helenização” do cristianismo. Mas, na verdade, a igreja usou a linguagem que conhecia em sua época, como ainda hoje, continua desenvolvendo-se em seu linguajar teológico para explicar cada vez melhor as doutrinas bíblicas. Tillich, se referindo aos dogmas, disse que estes não são fins em si mesmos, mas que sempre estarão abertos a questionamentos.
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