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quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

II - NOVOS TEMPOS, VELHAS CRENÇAS (b)

C. Religiosidade



Finalmente, o senso de transcendência a que em seguida nos referimos é o maravilhar-se diante do mistério, que levava o pagão pré-cristão ao ato de adoração. No mundo moderno, o sentido, o instinto e a prática da adoração per se entraram em declínio. Na civilização ocidental é cada vez menor o número de pessoas que adoram seja quem ou o que for. Mesmo em nossas igrejas temos visto essa influência nefasta do neo-paganismo, levando nossas comunidades a adotar liturgias em que o sentimento de reverência cede lugar à descontração e o bem-estar do adorador torna-se mais importante que sua contrição e dedicação. Os efeitos se fazem presentes também na teologia moderna, em que as doutrinas são desmitologizadas, desmiraculizadas e desdivinizadas. Assim, até mesmo teólogos cristãos tornaram-se adeptos da mentalidade moderna neo-pagã, uma vez que o neo-paganismo, diferentemente do velho paganismo da antigüidade, abandonou a crença no sobrenatural e no transcendente e tornou-se naturalista e imanentista. Aos poucos a religiosidade neo-pagã foi-se tornando, portanto, não somente uma forma de humanismo disfarçado e uma re-edição piorada do politeísmo, mas também uma forma popular de panteísmo. O panteísmo popular moderno é uma religiosidade muito confortável em que Deus é transformado numa espécie de "força" à la Guerra nas Estrelas, disponível sempre que necessário, mas que não incomoda. (30) É conveniente para os seres humanos verem-se como "bolhas da grande espuma divina" em vez de compreenderem-se como filhos rebeldes de um Pai divino e justo, desesperadamente carentes de se reconciliarem com ele, e absolutamente impotentes no que se refere a essa condição espiritual. O panteísmo rejeita qualquer idéia que se assemelhe ao conceito bíblico de pecado porque pecado implica em separação entre Deus e o pecador (Rm 3.19-20; 5.12; 8.7-8; 11.32), e ninguém pode estar separado da totalidade. Por isso, não pode haver temor de Deus sob uma perspectiva panteísta. Portanto, do ponto de vista neo-pagão, o que a Bíblia chama de "princípio da sabedoria" (Pv 1.6) é aquilo que precisa ser erradicado das mentes acima de tudo.

A solução, portanto, não se encontra em uma apropriação mais cautelosa ou mais exata do paganismo clássico pré-cristão. Apenas a fé cristã possui as respostas para os problemas práticos, teóricos e religiosos do mundo de hoje. O senso de transcendência do paganismo não pode ser visto como equivalente ao senso de transcendência cristão. Este último é qualitativamente diferente daquele. Não é à toa que a mais explicitamente pagã de todas as heterodoxias modernas, o deísmo, seja uma teologia que enfatize a transcendência divina ao preço da imanência divina. A fé cristã ortodoxa rejeita ambas as opções radicais de transcendência (deísmo) e de imanência (teologia liberal do século XIX) das correntes teológicas que buscaram a síntese do paganismo com o cristianismo. A conclusão a que se chega é que o neo-paganismo acaba por cair, ou no racionalismo, ou no irracionalismo. Os grandes pensadores cristãos dos últimos séculos, percebendo essa terrível encruzilhada, insistiram na necessidade de enfatizar a totalidade humana, de salientar o fato de que o ser humano precisa ser compreendido em sua inteireza, sem ser dividido, fracionado, compartimentalizado. O ser humano não é apenas razão, ou emoção, ou vontade, ou corpo, ou espírito. O ser humano é um todo, e só pode ser compreendido corretamente se visto como um todo. Minha opinião é que teorias dicotomistas ou tricotomistas são racionalismos que devem ser rejeitados. Afirmando a unidade do ser humano, e as simultâneas e completas transcendência e imanência de Deus, o cristianismo não deixa espaço para noções panteístas, e se mostra superior tanto ao paganismo quanto ao neo-paganismo. 


Post-Scriptum


Como afirmei no início, a chamada Nova Era não é uma conspiração. Mas na unificação dos inimigos da fé cristã, a saber, panteísmo, politeísmo e humanismo, unificação esta levada a cabo pelo neo-paganismo, pode-se perceber a estratégia do inferno, que todavia não pode prevalecer contra a igreja. Pelo contrário, é a igreja que está por lhe arrombar as portas (Mt 16.18). No Calvário, quando as forças anti-cristãs dos mundos grego, romano e hebreu se uniram na crucificação de Cristo (fato este simbolicamente representado na acusação contra Cristo afixada na cruz, escrita em três línguas: Lc 23.38; Jo 19.19-20), o triunfo do mal foi também a derrota do mal, e a morte do Filho de Deus significou a redenção do ser humano (ver Cl 1.13-14). Nós estávamos condenados pelas nossas transgressões, e Deus nos deu vida em Cristo, perdoando-nos nossos delitos, "tendo cancelado o escrito de dívida que era contra nós e que constava de ordenanças, o qual nos era prejudicial, removeu-o inteiramente, encravando-o na cruz; e, despojando os principados e as potestades, publicamente os expôs ao desprezo, triunfando sobre eles na cruz" (Cl 2.13-15). Certamente, o neo-paganismo de nossos dias estará em breve tão morto e enterrado quanto o velho paganismo dos antigos está hoje. E o Deus revelado em Jesus Cristo, aquele que pronunciou a primeira palavra, terá novamente a última palavra. "Eu sou o Alfa e o Ômega, diz o Senhor Deus, aquele que é, que era, e que há de vir, o Todo-poderoso" (Ap 1.8).

1 G. K. Chesterton (1874-1936) é um autor que precisa ser mais lido no Brasil. Chesterton era um grande amigo de C. S. Lewis. Seus livros ensinam como se faz filosofia cristã de primeira qualidade e foram algumas das melhores respostas cristãs ao pensamento moderno. Eu recomendo, por exemplo, os livros Orthodoxy (Nova York: Doubleday, 1990 [1908]), Heretics (Londres: G. Lane, 1905) e The Everlasting Man (San Francisco: Ignatius Press, 1993 [1925]).


2 Chesterton, The Everlasting Man, 237.



3 Ibid., 237-38. Minha tradução.


4 Para saber mais sobre o chamado pós-modernismo, ver Stanley J. Grenz, Pós-modernismo: Um Guia para Entender a Filosofia do Nosso Tempo (São Paulo: Vida Nova, 1997). Esse livro é uma boa introdução ao assunto. Outros livros que podem ser de auxílio nesse complicado tema filosófico e cultural são: Brian D. Ingraffia, Postmodern Theory and Biblical Theology (Cambridge, Inglaterra: Cambridge University Press, 1995), especialmente pp. 167ss.; J. Richard Middleton e Brian J. Walsh, Truth Is Stranger than It Used to Be (Downers Grove, Illinois: InterVarsity Press, 1995), especialmente a primeira parte, pp. 7-84; David S. Dockery, ed., The Challenge of Postmodernism (Wheaton, Illinois: BridgePoint, 1995); e Gene Edward Veith, Jr., Postmodern Times (Wheaton: Crossway, 1995). Ver também o meu artigo "A Morte e a Morte da Modernidade: Quão Pós-moderno é o Posmodernismo?" Fides Reformata 1:2 (Julho-Dezembro 1996), 59-70.



5 O que se chama de modernismo é a cosmovisão que prevaleceu durante os últimos três séculos, caracterizada pelo seu cientificismo, historicismo, racionalismo, e otimismo humanista, entre outras coisas. Ver Robert B. Pippin, Modernism as a Philosophical Problem (Oxford: Blackwell, 1991).



6 Chesterton, Orthodoxy, 259. Minha tradução.

7 Ver Peter Gay, The Enlightenment: The Rise of Modern Paganism (Nova York: W. W. Norton & Company, 1966), 256-321. A teoria básica de Peter Gay serviu também de base para este artigo, isto é, que "o iluminismo foi uma mistura volátil de classicismo, impiedade, e ciência; les philosophes, resumindo, eram pagãos modernos." Ibid., 8.



8 Os especialistas divergem, contudo, quanto ao relacionamento e envolvimento entre humanistas e reformadores, e se seria historicamente correto considerar estes um sub-grupo daqueles. Ver, por exemplo, os estudos do erudito calvinista tcheco Josef Bohatec sobre esse assunto: Die Religionsphilosophie Kants, 1938, reimpresso em 1966.


9 Confira Gay, The Enlightenment, 3-27.


10 Ver Immanuel Kant, Religion within the Limits of Reason Alone (Nova York: Harper Torchbooks, 1960).

11 Ver, por exemplo, as populares obras de ficção de Frank Peretti (e.g., Este Mundo Tenebroso), e livros como: John Bevere, The Bait of Satan (Orlando: Creation House, 1994) e Bob Larson, Straight Answers on the New Age (Nashville: Nelson Publishers, 1989). Não que estes livros sejam imprestáveis, ou que seus autores sejam charlatães. Mas há uma atitude que me parece errada entre os chamados "profetas da desgraça" do evangelicalismo americano, uma vontade de formular teorias místicas e maniqueístas de conspiração e de uma espécie de "ocultismo cristão" que considero heterodoxo e prejudicial para a saúde espiritual da igreja.



12 Para saber mais sobre o tema "batalha espiritual," ver o livro de David Powlison, Power Encounters: Reclaiming Spiritual Warfare (Grand Rapids: Baker, 1995) e também o livro de Augustus Nicodemus G. Lopes, O que Você Precisa Saber sobre Batalha Espiritual (São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1997).

13 Ainda que eu esteja aqui fazendo uso da expressão cunhada pelo pensador pós-moderno Michel Foucault em Arqueologia do Conhecimento, isso não significa que estou adotando ipsis litteris o método do filósofo francês, que por sinal possui boas qualidades.

14 O método aqui adotado enquadra-se melhor dentro da tradição estabelecida pelo filósofo calvinista holandês Herman Dooyeweerd. Ver, por exemplo, Roots of the Western Culture (Toronto: Wedge Publishing Foundation, 1979). 



15 Ver o capítulo "Christianity and the New Paganism," em Peter Kreeft, Fundamentals of the Faith: Essays in Christian Apologetics (San Francisco: Ignatius Press, 1988), 102.

16 Ibid.

17 Citado por Kreeft, Fundamentals of the Faith, 102. Minha tradução. Ver o capítulo "The Escape from Paganism," em Chesterton, The Everlasting Man, 232-49, e o capítulo "Authority and the Adventurer," em Orthodoxy, 141-60.


18 John M. Rist, estudioso de Agostinho e professor na Universidade de Toronto, Canadá, é uma das maiores autoridades vivas sobre o pensamento do celebrado bispo de Hipona.



19 John M. Rist, Augustine: Ancient Thought Baptized (Cambridge, Inglaterra: Cambridge University Press, 1994), 12. Minha tradução. Eu creio, todavia, que é inadequado interpretar a experiência de conversão dessa forma. Ainda que haja uma inegável continuidade, a conversão implica numa completa transformação do indivíduo no mais íntimo do seu ser, e toda continuidade que ocorrer tem que ser interpretada à luz dessa transformação essencial. Na vida do próprio Agostinho podemos ver como toda a bagagem trazida do paganismo recebeu em suas mãos uma nova significação. Mas a continuidade existe, e talvez a melhor forma de explicá-la é perceber que a conversão representa, não um giro de 180 graus, mas sim um giro de 360 graus, isto é, a vida prossegue, e o indivíduo inicia, após sua conversão, um longo processo de reavaliação de suas idéias e concepções através do qual ele redimensiona sua existência. 



20 Kreeft, Fundamentals of the Faith, 102-106.



21 Uma das questões mais controvertidas da história da teologia refere-se justamente ao grau de penetração e influência das idéias pagãs durante a construção do edifício teórico da teologia cristã. Não existem respostas fáceis para esse complexo problema. Muito do que há de melhor na teologia conservadora dos últimos trezentos anos representa um esforço no sentido de procurar uma aproximação maior e mais pura ao ensino das Escrituras, livre dos preconceitos e distorções provocados pela influência pagã na igreja e na teologia cristã desde o primeiro século até os nossos dias.


22 John Locke e Isaac Newton foram os mais importantes mentores do iluminismo. Todavia, eles funcionaram mais como ícones, símbolos de uma revolução do pensamento que propriamente uma influência concreta em termos de idéias que muitas vezes não eram conhecidas ou eram mal compreendidas. Ver, por exemplo, o excelente estudo de Gerd Buchdahl, The Image of Newton and Locke in the Age of Reason (Londres: Sheed & Ward, 1961). A física newtoniana teve de qualquer modo um papel importante no iluminismo servindo de inspiração e paradigma para todas as áreas do conhecimento. Boas introduções para os aspectos gerais do pensamento newtoniano, e boas biografias de Newton (o método biográfico ajuda bastante aqueles que, como eu, têm dificuldades de compreender as nuances da física newtoniana), são Louis T. More, Isaac Newton: A Biography (Nova York: Dover, 1962); J. D. North, Isaac Newton (Oxford: Oxford University Press, 1967); Richard S. Westfall, The Life of Isaac Newton (Cambridge, Ingl.: Cambridge University Press, 1993); A. Rupert Hall, Isaac Newton: Adventurer in Thought (Oxford: Blackwell, 1992); Frank E. Manuel, The Religion of Isaac Newton (Oxford: Clarendon Press, 1974) e I. Bernard Cohen, The Newtonian Revolution (Cambridge, Ingl.: Cambridge University Press).



23 Ver os diálogos de Platão, especialmente Mênon e Êutifron.

24 O famoso gnothi seauton de Sócrates.

25 Ver Aristóteles, Ética a Nicômaco. Como sugere Chesterton, "o paganismo declarava que a virtude estava no equilíbrio; o cristianismo declarou que a virtude está no conflito: a colisão de duas paixões aparentemente opostas". Orthodoxy, 92. "São Francisco, ao louvar tudo que é bom, conseguia ser um otimista mais exagerado que Walt Whitman. São Jerônimo, ao condenar toda maldade, era capaz de pintar um quadro ainda mais escuro do que Schopenhauer." Ibid., 96. "O leão se deitará com o cordeiro. Mas note que este texto tem sido interpretado de forma muito suave. Nós somos constantemente assegurados por nossas tendências tolstoyanas que, quando o leão se deita com o cordeiro, ele se torna igual a um cordeiro. Mas isso é uma anexação brutal e um imperialismo da parte do cordeiro. Isso é apenas o cordeiro absorvendo o leão em vez de o leão comendo o cordeiro. O verdadeiro enigma é: pode o leão se deitar ao lado do cordeiro e todavia manter toda sua ferocidade real? Esse é o enigma que a igreja tentou resolver; esse é o milagre que ela alcançou." Ibid., 98.



26 Gay, The Enlightenment, 226.


27 O conceito de quase-religiões foi criado nos anos 60 pelo teólogo neoliberal Paul Tillich para referir-se a fenômenos secularistas, como, por exemplo, o marxismo, o nazismo, o humanismo e o cientificismo.


28 Ver, por exemplo, o volume de ensaios sobre cristianismo e cultura editado por Os Guinness e John Seel, No God but God: Breaking with the Idols of our Age (Chicago: Moody Press, 1992).

29 A ética moderna em geral tem privilegiado uma metodologia racionalista. Tanto a ética deontológica de Kant e seus seguidores, quanto a ética utilitarista dos ingleses Bentham e Stuart Mill são calcadas na ética pagã, e desconhecem a noção de uma ética baseada na revelação especial de Deus. Os pressupostos básicos por trás das éticas racionalistas são a supremacia e a autonomia da razão humana. 

30 Ver a crítica que o celebrado pensador cristão inglês C. S. Lewis já fazia nos anos 40 a essa mentalidade em seu livro Miracles (Nova York: Macmillan, 1947).

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